segunda-feira, 29 de junho de 2020

série pandemia

A TEMPESTADE
O anúncio de uma tempestade escurece o horizonte. A névoa acinzentada nos cega e tudo que vemos é o ruído da ventania. Olho pela janela da minha casa e me pergunto sobre a salvação, se ela vem após a chuva.
Por hora ela ainda não chegou.
Todo dia durmo e acordo com medo e sei que não estou só, quando percebo isso no olhar das pessoas que eu amo. Gosto da minha vida com elas e temo por elas.
Temo de tal forma que me falta o ar, ao pensar no que pode vir a acontecer.
Sinto-me paralisada diante dessa chuva chegando e respeito seu tamanho.
Sei sim que ela é maior que eu. Por isso me aquieto.
Dizem que nas artes marciais saudamos o inimigo curvando-nos a ele, reconhecendo sua força.
Pois bem, reconheço que algo invisível pode roubar aquilo que me é precioso.
Por isso luto.
Luto em casa, limpando o que posso.
Luto me sacrificando todos os dias ao não abraçar minha mãe. E ao vê-la numa tela. Mas ela ainda está lá , penso aliviada.
Luto fazendo jantares virtuais com as amigas que adoro.
Luto aguentando meus filhos entediados, correndo pela sala, saudosos de seus amigos.
Luto enjaulada, é só o que posso fazer.
Mas ainda posso, então me vejo grande.
Luto ligando para quem eu prezo pedindo que se cuidem. As vezes me sinto feito bêbada que fica dizendo eu te amo toda hora desnecessariamente. Digo aos professores que tive que os amo, supervisores, minhas ex analistas , aos médicos que já me cuidaram: Cuidem-se.
E nessa fala percebo que lhes agradeço por estarem vivas. Por estarem em minha vida até agora.
E isso tem sido o bastante,
Essa semana começou com presos soltos e uma sociedade encarcerada. Essa semana começou com anuncio de óbito.
Mas essa semana começou, ainda assim. O sol chegou na minha casa pela manhã e eu pensei, por enquanto está tudo bem. E esse “por enquanto “ foi suficiente. E assim será.
Uma paciente médica me disse que estar em quarentena é uma sorte. Como ganhamos de nossos pacientes, eu pensei. E nessa frase ganhei um por enquanto. Um outro paciente me disse que era seu aniversário e ele não ia comemorar com os amigos, mas que dançaria com a esposa na sala. E esse foi meu por enquanto.
E com todos eles, hei de fazer uma eternidade.
Por que vírus são sazonais , mas meu amor pela vida dura enquanto ela existir.

HELENA CUHA DI CIERO
PSICANALISTA

série pandemia

Beijo de mãe não cura tudo, mas alivia.

Ando me lembrando constantemente do filme “a vida é bela “ em que o pai disfarça a situação do campo de concentração com leveza e alegria .
Talvez esse seja nosso único e possível ato heróico , nesse momento de tanta impotência .
Trazer alguma leveza nessa tentativa de enganar a dor e a tristeza daquilo que estamos vivendo.
As vezes eu grito : quem vai sentir saudade da quarentena ?
E eles dizem :
- Euuuu !
E eu sorrio achando que estou fazendo a coisa certa .
Mas na verdade eu nunca tive tanto medo da vida. Nem quando eu era pequena.
Pensando bem , nesse momento me sinto outra vez pequena .
Hoje no jornal tinham caminhões de frigorífico em frente ao hospital.
Toda noite uma cena assustadora aparece para ilustrar aquilo que não tem nome.
E essas cenas voltam quando eu fecho os olhos.
Essa semana eu dormi com os dois no quarto , fizemos um acampamento , colchões no chão. Como eu fazia quando era criança e acordava assustada.
Era eu, adulta quem precisava sentir segurança nesse momento.
E quando eles acordaram gargalhando o medo que eu passei de madrugada ,ficou atenuado.
Foram eles meus heróis dessa vez .
O meu colchão no chão.
E eles nem sabem .
Fica então registrado , pra quando vocês crescerem e estiverem estudando com seus filhos uma epidemia misteriosa que ocorreu em 2020, vocês foram a vacina da mamãe .


Helena Cunha di Ciero
psicanalista

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A NOSSA HUMANIDADE
Helena Cunha Di Ciero - SBPSP
"Nossa felicidade está para sempre ameaçada, pois o bacilo da peste não morre nem desaparece, pode ficar dormente por anos e anos
em móveis e roupas aguardando sua hora em quartos, em porões, em baús, em lenços e em pedaços de papel. E virá o dia em que ... para desgraça e ensinamento dos homens, a peste acordará seus ratos e os mandará para morrerem numa cidade feliz". (Albert Camus, A peste, 1947)
Estamos todos presos. Curiosamente, encarcerados em casa nos sentimos livres de adoecer. Mas, ainda assim, doentes de alguma forma, uma vez que estamos privados daquilo que nos mantém sãos. Os amigos de fim de semana, os abraços apertados em quem amamos. Nunca a pele foi tão importante e tão perigosa. Estar em casa nesse momento é nossa única arma de luta junto ao sacrifício que fazemos ao nos distanciar de quem amamos.
Quem diria que um dia a distância seria prova de amor?
Diz Valter Hugo Mãe, em A desumanização: “o inferno não são os outros, os outros são o paraíso. Um homem sozinho é apenas um animal, a humanidade começa nos que te rodeiam, não exatamente em ti. Ser-se pessoa implica a tua mãe, as nossas pessoas o desconhecido e sua expectativa”.
Hoje o que importa é estar saudável e zelar pela saúde daqueles que amamos. E,nesse cuidado, vem a necessidade de compartilhar. Compartilhar noticias, remédios promissores, campanhas de auxílio. Empatia é a palavra da vez. É preciso olhar o outro, oferecer ajuda ao vizinho idoso, preparar uma “quentinha” para aquele que está só e poupar os exaustos profissionais da saúde.
Diz Freud em sobre o Narcisismo (1914): “É preciso amar para não adoecer, estamos destinados a cair doentes se em consequência da frustração formos incapazes de amar” e Renato Russo em 1980 cantou: “ É preciso amar as pessoas como se não houvesse amanhã”. É preciso cuidar hoje, o amor, o cuidado, nunca se fez tão urgente. O que temos é o agora: hoje eu ainda não adoeci, só por hoje aguentei outro dia em casa.
Foi no Peru que entendi a força da palavra compartilhar. Dizem os Incas que, quando na Cordilheira dos Andes você cruzar com um transeunte e tiver alimento para oferecer, é preciso compartilhar, como uma forma de gratidão por aquilo que a pachamama (mãe-terra) ofertou. Assim, aquele que caminhava se alimenta, e aquele que estava só, sente-se acompanhado.
Estender a mão fisicamente não é possível nesse momento, mas oferecer ajuda sim. E isso tem sido a parte mais bela desse horror que estamos vivendo.
Em que momento nós humanos arrogantes esquecemo-nos que a impotência faz parte da experiência de estar vivo? Atualmente todos estamos curvados a algo tão poderoso quanto invisível. Nossa geração vaidosa do selfie, tão desesperada para sentir-se vista, hoje se esconde em casa buscando proteção. Ao mesmo tempo, até as redes sociais mudaram: o look do dia perdeu o sentido. A bolsa da moda, a maquiagem, nada disso tem serventia neste momento. As lives estão mais frequentes, afinal, estamos vivos e é preciso compartilhar essa experiência. A nova #hasthag é: compartilhe seu dom. O luxo agora é estar vivo, mesmo que de chinelo e de pijama. Luxo é ter abrigo. Saúde. Alimento. Máscara.
Na semana passada, fui pegar o tal álcool gel e, na volta, a rua do meu itinerário estava fechada. O guarda de trânsito veio na minha janela avisar que a rua estava bloqueada. Agradeci, e sem pensar muito, disse: saúde a você e para sua família. Meus olhos se encheram de lágrimas. Percebi que ele ficou também comovido. Enquanto dirigia, fiquei pensando: quando, na minha vida, eu teria tido a chance de desejar algo com tanta profundidade a um simples desconhecido?
A proximidade da morte também nos traz crescimento, além da dor. Nem toda a privação é perda apenas. Talvez a única forma de tolerar o que estamos vivendo seja buscar sentido nessa privação. Ainda que o sentido seja nos revelar num espelho, o quanto estávamos distantes do que é ser humano de fato, é o quanto vínhamos andando afastados da qualidade que essa experiência pode nos proporcionar.
(Os textos publicados são de responsabilidade de seus autores).
Imagem: Schauspielhaus Düsseldorf / 2012. Candida Höfer (artista).
Os ensaios também são postados no site da Febrapsi. Clique no link abaixo:

Observatório Psicanalítico - 158/2020
Ensaios sobre acontecimentos sociais, culturais e políticos do Brasil e do mundo.

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TUDO RAIA

“Sei que canto. E a canção é tudo.
Tem sangue eterno a asa ritmada.
E um dia sei que estarei mudo:
– mais nada.”
Cecília Meirelles
*Helena Cunha Di Ciero
As notícias são assustadoras e a iminência de que algo terrível está para acontecer nos assombra.  Dizem que o pico está para chegar, vejo as curvas da pandemia em ascensão e me lembro da Noviça Rebelde subindo a montanha com seus sete enteados fugindo do nazismo. Ela que me acolheu em tantas tardes na infância. Acolhe, hoje, meu terror, quando olho a curva de infectados subindo e penso em Climbing the Mountain tocando de fundo, um horizonte azul se anunciando e a promessa de liberdade. Assim terminava o filme que eu adorava em pequena. Será que isso vem depois do pico da montanha? Do pico da doença? Haverá um horizonte azul?
Não sei, o gráfico sobe e enquanto ele sobe, meu coração pulsa. The Hills are alive with the sound of music, canta a Noviça na primeira cena do filme. As montanhas estão vivas: e eu também. Então, sigo em frente.
Confesso, porém, que abro os olhos já há algumas semanas e repetidamente sopra a canção em pensamento: “Dorme minha pequena, não vale a pena despertar”, cujo título, (enquanto escrevo me dou conta) é: “Acalanto para Helena”. Meu nome. Eis minha canção de acordar, meu autoacalanto. Então eu canto. Afinal eu canto porque o instante existe, assim dizia Cecília Meirelles. Inevitavelmente, desperto, o dia raiou. Nesse instante estou a salvo.
Independente do coronavírus, da Covid-19, doença causada pelo Sars-Cov-2. (palavras que vim conhecer há menos de dois meses, mas que hoje fazem parte do meu vocabulário com mais constância do que nunca) o dia teimoso insiste em raiar. Meus olhos se abriram, mesmo com medo.
As manhãs nos fazem entender o raiar do sol como uma promessa de esperança.  A doença teima em existir, assim como o sol. Marina Lima diria: “Se tudo cair, que tudo caia, pois, tudo raia”. Em “Sobre a Transitoriedade”, Freud nos traz a ideia dos ciclos da vida como sendo parte de sua beleza. Estamos num ciclo de pandemia, mas assim como passou o nazismo, as guerras, a ditadura, a peste negra, isto também vai passar.
Há algum tempo, conheci o artista japonês On Kawara cujo trabalho consistia em mandar, durante muitos anos, telegramas para os amigos e colecionadores com a frase: I am still alive.  Vi essa exposição alguns anos atrás e a força dessa frase me tocou profundamente. I am still alive.
EU AINDA ESTOU VIVO.
Still.
Ainda.
Ainda pode parecer pouco, mas é um lugar seguro nesse instante. Ainda, hoje, é território sagrado.
Caetano também cantou, enquanto exilado: I’m alive and vivo muito vivo, vivo, vivo Feel the sound of music banging in my belly know that one day I must die I’m alive.
E em interpretação dos sonhos Freud coloca que a fantasia é o que nos faz tolerar a realidade e que o sonho existe para que o indivíduo consiga suportá-la. Seguirei cantando enquanto tiver voz. Seguirei procurando pelo sonho. Colocando melodia em gráfico de morte. Seguirei procurando pela pulsão de vida. Ainda que a morte bata na porta da minha casa.
Hoje não, Sr. Corona. Hoje, estou ocupada, hoje não posso te atender.
*Helena Cunha Di Ciero é psicanalista, membro Associado da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo (SBPSP), especialista em Psicologia Psicanalítica pela Universidade de São Paulo (USP).

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Escrevo por que não me caibo .
Escrevo para ser livre .
Escrevo para me proteger , para me vacinar , para entender , para elaborar .
Escrevo para não deixar de caminhar .
Escrevo para respirar
Escrevo para não me isolar
Escrevo para raiar .
Escrevo pois é o que vai ficar.

Helena Cunha Di Ciero

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NOS DERAM ESPELHOS E VIMOS UM MUNDO DOENTE
A cidade estava tão quieta hoje que dava para ouvir o barulho assustado do meu coração.
Respirava com lamento , mas ainda me sentia viva.
Culpada por esse privilégio, entre tantos outros, que nessa semana estavam tão evidentes.
O silêncio denso contava alto e em bom tom que um pedaço do mundo estava adoecido.
A dor está no ar .
O medo está no ar.
A miséria está no ar.
O descaso está no ar.
O vírus está no ar.
( Eu penso enquanto caminho )
A cidade muda no sábado à tarde , que mais parece domingo .
Mas o que parecia calma , era na verdade desalento.
Tem sido domingo há três meses .
Três longos meses.
Desde quarta feira de cinzas .
Semanas que revelam uma metrópole desprotegida , assustada.
Parece cinza.
Ainda que tenha sol .
Chegou outono , folhas no chão .
Nas ruas as pessoas tem medo de se aproximar .
Nem se olham de pavor .
Envergonhadas por sentirem repulsa umas das outras: “ Será que ele carrega o vírus ?” - Penso ao cruzar um amigo na rua e de longe acenar .
Tudo fechado.
Parece Terra de ninguém.
Mas é minha terra. Onde eu nasci .
Tenho que me adaptar.
Essa noite choveu gelo.
Deve ser dos corações dos insensíveis aos números . Assim espero.
A semana começou com um homem suplicando para respirar enquanto outro colocava o joelho brutalmente em seu pescoço.
Eu li a notícia com pressa pois não aguentei . Mas a notícia virou protesto , entrou por todos os lugares , mesmo eu tentando mudar de canal .
Então sonhei com George .
George no chão , sem ar.
Li em algum lugar que ele gostava de levar as palavras de Deus para as pessoas .
E eu não sei onde Deus anda .
Mas deve estar desapontado, certamente.
A semana terminou com uma criança caindo de uma janela por uma crueldade de um adulto .
Miguel no ar , sem chão .
Mas eu não também não aguentei ver o vídeo.
E George dizia I can’t breathe.
E tantos no mundo agora também não podem respirar.
Falta ar.
Miguel dizia , quero minha mãe .
Em mim tem faltado coragem para simplesmente ler as notícias .
Respiro antes de pegar o jornal.
Assumo minha covardia .
Então escrevo para enfrentar.
Eu também tenho medo de respirar e nunca quis tanto abraçar minha mãe.
Helena Cunha Di Ciero/ psicanalista