quinta-feira, 10 de outubro de 2013

meu primeiro congresso sem você



A Mário de Andrade ausente
Anunciaram que você morreu.
Meus olhos, meus ouvidos testemunharam:
A alma profunda, não.
Por isso não sinto agora a sua falta.
Sei bem que ela virá
(Pela força persuasiva do tempo).
Virá súbito um dia,
Inadvertida para os demais.
Por exemplo, assim:
À mesa conversarão de uma coisa e outra,
Uma palavra lançada à toa
Baterá na franja dos lutos de sangue.
Alguém perguntará em que estou pensando,
Sorrirei sem dizer que em você
Profundamente
Mas agora não sinto a sua falta.
(É sempre assim quando o ausente
Partiu sem se despedir:
Você não se despediu.)
Você não morreu: ausentou-se.
Direi: Faz já tempo que ele não escreve.
Irei a São Paulo: você não virá ao meu hotel.
Imaginarei: Está na chacrinha de São Roque.
Saberei que não, você ausentou-se. Para outra vida?
A vida é uma só. A sua continua.
Na vida que você viveu.
Por isso não sinto agora a sua falta.
Manuel Bandeira



Mais de 1500 pessoas na platéia.
Eu lá em cima, sozinha.
Era uma peça sobre Freud, na abertura do congresso de Psicanálise.
Me distraía o tempo todo, olhando para baixo.
Procurando pela sua careca entre todas as cabeças sentadas.
Eu temia estar falando muito de você, mas não conseguia não pronunciar seu nome.
Era o jeito de sentir que você ainda estava comigo, ao meu lado.
Sentia um pouco de vergonha , pois minha dor parecia tão escancarada - quase colada no crachá que me deram na entrada.
Estava escrito assim , na etiqueta : é a filha dele ,aquele analista que morreu ano passado. Foi câncer.
 E eu até ouvi isso baixinho quando levantei para ir ao banheiro.
Vontade de virar para trás e dizer : " Com muito orgulho, sou filha dele sim."

Você tinha me apresentado todas aquelas pessoas.
E eles me viam no intervalo, me abraçavam. As vezes falavam de você , constrangidos. "Que saudades do seu pai" - Confesso que eu ficava feliz por saber que ainda lembravam de você.
E eu respondia : "Todos os dias  eu vou sentir saudade, para sempre . " Quase como um jeito de me conformar  com essa frase que agora está tatuada no meu coração. Eu não tenho mais pai.
 Eu não tenho mais , mas eu queria tanto que entre aquelas 1500 pessoas eu só visse a carequinha dele. Podia ser só aquela falha , atrás do cabelo.
Aquela falha que como você não via, achava que ela não existia.
"Estou envelhecendo bem né, filha? Fui o único de meus amigos que ainda não ficou careca."
Você costumava dizer. E eu achava que concordando contigo, enganaríamos o tempo e a morte.Mas o buraco atrás do seu cabelo grisalho, revelava que o tempo era contado agora.

E me perguntava , se você estivesse lá estaríamos juntos nos intervalos.
Debatendo os temas. Eu tentando não ser muito crítica, para evitar que você me chamasse de prepotente. E assim a gente acabaria brigando.
Mas era assim que éramos nós dois.
E  mesmo depois da briga,se passasse algum amigo seu você seguraria no meu braço, diria assim : 'Essa é minha filha" E a pessoa se constrangeria com a sua cara de coruja que transbordava  do seu rosto. Como eu gostava do jeito que você me via. Assim faríamos as pazes.

Que falta você faz, meu pai..

Mas você não chegou a conhecer, minha amiga Berta. Que foi o anjo que segurou minha mão quando o avião pousou de volta em São Paulo . E que chorou comigo -por pura solidariedade , quando me viu desabar na hora que tudo isso acabou. E que me ajudou a sorrir e ficar firme, no meio dessa avalanche de saudade.
Você ia ter gostado dela, pai. Forte, sabida, parceira. Pena não a conheceu. Acho até que você deu um jeito de me mandar aquele anjo sabido para me encher de coragem para recomeçar.

terça-feira, 1 de outubro de 2013


LA VIE EN ROSE C’ EST UNE AUTRE CHOSE.
C’est lui. C’est moi. C’est ça. C’est la vie des choses que n’ont pas autre choix.
Paulo leminsky.



por uma vida mais ordinária.

Eu tenho verdadeiro horror a pessoas  que se dizem realizadas . Essa gente que encontramos na rua com aquele sorriso plástico no rosto e que diz : Estou realizada . Mas que raio de história é essa ? Como é possível estar realizado e ainda sim estar vivo ?  Nutro também um certo desprezo pelas capas de revistas cujas manchetes anunciam: fulana de tal , realizada no amor e na carreira celebra a vida no mar , ou então , Fulano de tal comemora mais um ano com plenitude  e sabedoria , realizado.
Onde a gente acha isso na vida real ? Assim , essa plenitude toda . Sim, pois até hoje o que tive foram momentos gostosos ,mas também tive rotina , banco , contas, dores, desencontros e diversas chatices . E agora tem um tal de glúten que incha a barriga que devo evitar .
            Realização no dicionário também tem a ver com finalização . E enquanto estamos vivos nada está assim tão sólido, tão seguro. Invevitavelmente, alguma coisa vai dar errado. Mas ninguém comenta . Acho isso assustador .
Já faz um tempo que a frase : " a vida é dura " caiu em desuso . Parece que na época das nossas avós havia uma certa resignação com relação ás dificuldades com menos opções de "cura " das possíveis cicatrizes que a vida poderia deixar.
Hoje o que a gente vê são as vastas tentativas de solucionar a dureza da vida . São remédios com a finalidade de atenuar a dor ou mascará-la . Há uma necessidade absurda e quase violenta em acelerar o processo de cicatrização das feridas : " Toma um remedinho que a tristeza vai embora . E em nossa pele, uma busca frenética por preenchimentos diversos para tentar anular a passagem do tempo, apagar as rugas que testemunharam meu amadurecimento . Nada pode ser revelado : envelhecer é sinal de fracasso. 
Somos regidos pela urgência em aplacar as experiências que imcomodam. Resolver, disfarçar .Talvez ,afim de voltar a ser mais rapidamente produtivo e prontamente voltar a alimentar a voracidade do sistema capitalista. Se produzo, logo estou adaptado, causo menos rupturas nesse mundo mascarado de gente que funciona. Será?   
Surge inevitavelmente, uma nova lacuna : a  da negacão .Tudo que foi difícil, que ficou marcado , pode e deve ser mandado para baixo do tapete . Rápido . Quem sabe assim, passa desapercebido . Quem sabe assim nem eu mesma lembro do que vivi.  Qual será o preço que pagaremos por  toda  essa fuga? Ou seria essa covardia?
 Hoje , a palavra da vez é pressa .Para tirar uma foto sorrindo : do prato que eu comi , do lugar que eu visitei , dos amigos que encontrei . Me parece que é preciso que alguém valide minha experiência agradável afim de comprovar que ela existiu . Se eu estava lá , nem sei . Mas tive 25 curtidas o que deve ser um sinal de que naquela hora eu fui feliz .
Acho que  a felicidade  não deve ser vista como um objetivo a ser alcançado e sim como  um momento , que nunca é duradouro . É nesse peso todo que mora a encrenca ,na minha opinão, na necessidade de garantir a durabilidade desse sentimento.
Nessa eterna busca empobrecemos todo o resto do trajeto. E isso acaba sendo de uma tristeza absurda pois não é possível viver uma vida de verdade tendo sido só feliz . Não há uma escolha  com relação ás dificuldades . Elas se colocam , sem pedir liçença.
Quando pudermos assumir com tranquilidade  que nossa identidade é formada também pelas imperfeições ;  Quando finalmente deixarmos de ficar reféns apenas do  pensar positivo ou do sorriso artificial ou  quando  lembrarmos que rir de tudo pode sim ser sinal de desespero ….talvez encontremos  um verdadeiro alívio : O de ser quem  sou , podendo não viver como uma atriz , em busca de aplaiusos ou curtidas.
 Ser verdadeiro , ser genuíno é sentir tudo que um coração vivo for capaz, em toda sua dimensão . Tanto o bom, quanto o ruim . Tudo isso nos enche de vivência , de experiência e principalmente : de coragem para saber que posso contar comigo para ir adiante .
Acho que a questão vista de longe , pode até ficar confundida com um certo conformismo, mas na verdade falo de resignação como uma possibilidade de contemplação daquilo que passei ao longo do meu caminho.  Contemplar é ver a figura como um todo. E a vida é dura mesmo , já diziam nossas avós.
É inútil pensar que dá para construir uma história sem tristeza , rugas , noites em claro e ressaca moral . Tudo isso somado cria uma experiência individual e singular . Viver se enchendo de lacunas é viver esburacado . E isso sim não tem nada de realizado .










Helena Cunha Di Ciero é Psicanalista , Membro filiado da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo e quer deixar para o seu filho Francisco um retrato da vida com mais verdade.