terça-feira, 28 de junho de 2011

texto publicado na revista amarello

Paixão e transe.

Taquicardia, sudorese, alucinação, distorção da realidade, tremores, ansiedade, idéia fixa que não cessa, obsessão, dependência.
Esses poderiam ser sintomas do delírio de uma pessoa atormentada pelo vício das drogas, ou acometida por algum distúrbio de ordem psiquiátrica. Mas também são freqüentes na pessoa apaixonada, refém de todas essas sensações e sentimentos.
Comparando a tomografia de apaixonados com as de viciados, foi constatado que as áreas cerebrais afetadas são as mesmas. Assim como a droga, a paixão cria no sujeito apaixonado a ilusão de fusão, somos eu e você uma única coisa, portanto, sem você não tenho prazer: não sou nada.
Paixão avassaladora ,carrega em si a palavra vassalo, escravo, aprisionado por um sentimento, refém.
A letra da canção de Lenine, avassalador, que invadia nossa casa a noite por causa da antiga novela das oito, é bastante rica em imagens:Aquilo te pega de jeito te dá um sacode para lá de além, o mundo todo estremece o caos acontece não poupa ninguém. Arrebatador vem de qualquer lugar. (Que também pode ser ouvido como vende, no sentido de vender qualquer lugar, ou qualquer coisa. Pois os apaixonados vendem tudo em troca de seu vício : a pessoa escolhida. Tudo fica em segundo plano, amigos trabalho, até mesmo a vaidade em alguns casos.
Bruno Bettelheim compara a paixão como algo do âmbito psicótico. Uma situação sem resto, sem troco. Me projetei no outro com tal força que quando ele me falta, não posso me retomar. Estou perdido para sempre.
Durante o estado de enamoramento, há um rebaixamento narcísico. Psicanaliticamente falando, um transbordar da libido do eu para o objeto de amor. Explico: a energia que estava voltada para mim, passa a voltar-se para o outro; Por isso a sensação de vazio, quando ele não está por perto.
Freud coloca em sobre o narcisismo que o apaixonado é humilde, isto é, que a dependência do objeto amado tem um efeito rebaixador no Ego. Por isso o sujeito a quem dirijo minha paixão torna-se tão vital e necessário. A ele dirigi tudo o que tenho de mais forte, meu amor próprio. Quando não o tenho, sinto como se tivesse sido roubado de minhas qualidades.
De alguma maneira, o estado apaixonado, coloca o sujeito amado numa condição de Ideal de Eu,isto é :Na condição que gostaríamos de ser tratados .O que o apaixonado vê no outro não é exatamente a pessoa amada, sim uma parte de si mesmo que é nele colocada. Aquilo que gostaria de ser.
Paixão é projeção, idealização. Distorção de realidade.Transe. Fantasia. Loucura.
Por outro lado, não há como suportar a realidade sem fantasia. Ela é responsável pela expressão de nossos desejos, também é um meio da realização dos mesmos.É ela que nos mobiliza.Sem sonhos, sem fantasia, não há lugar para nos refugiarmos do dia-a-dia, do cotidiano, das frustrações da vida real.
É preciso de paixão para levar adiante um projeto, sem desejo ficamos paralisados. Paixão tem a ver também com movimento do instintos. Com vida e criatividade. Sempre pensei que os artistas deveriam estar embalados por uma espécie de transe apaixonado antes de suas criações .
Segundo Marai, no livro De Verdade: Insanidade não tem explicação, uma vez tudo na vida se arrebenta. Talvez seja muito pobre a vida sobre a qual pelo menos uma vez a tempestade dessas explosões , que não tem paredes de sustentação abaladas por essa espécie de terremoto, que não tem as telhas do teto arrancadas pelo furacão cujo uivo desloca por um instante tudo o que até a razão e o ser mantinham em ordem.
A chama da paixão que arde, queima tudo, dá sentido a muitas coisas e também questiona outras. Mais uma vez citando Marais: A paixão não festeja.Dá tudo e exige tudo.
Os fazendeiros costumam queimar o pasto antes de plantarem capim. Um coração queimado pela paixão pode ser um terreno fértil para outras construções. Pois há neste sentimento um lado construtivo além do destrutivo. Embora consuma o sujeito, também lhe enche de vivências.
Trata-se de uma crise que abala as estruturas mentais, mas sem movimento não há crescimento. Não há questionamento, nem amadurecimento. Talvez seja necessário que alguém de alguma forma surja para abalar nosso mundo, para que ele seja novamente reconstruído, re- pensado.
De alguma maneira é necessário conseguir dirigir ao outro minha energia, pois se ela fica aprisionada dentro de mim, também me intoxico. Em outras palavras, sábias palavras de Freud:
É preciso amar para não adoecer , estamos destinados a cair doentes, se em conseqüência da frustração, formos incapazes de amar.



Helena Cunha di Ciero - psicanálise