terça-feira, 14 de fevereiro de 2012

aquilo que fica para sempre*

“ENTRE O MURO E A JABUTICABEIRA. EU VEJO E ME LEMBRO, NÃO VI, NEM TAVA LÁ”
Certa vez, um pai contou-me que seu filho temia ir á praia, quando pequeno. Um dia ajoelhou-se junto do menino para entender como ele via o mar. Rapidamente compreendeu sua aflição: Aos olhos de uma criança, o oceano é de uma imensidão assustadora.
Essa imagem ilustra como vemos o trauma em termos de intensidade : O frágil indivíduo a ele exposto se sente sem saída, sobrecarregado, obrigado a lidar com seus próprios recursos. Por isso é comum falar de experiências traumáticas na infância, já que nessa fase da vida, estamos mais desprotegidos, menos preparados para lidar com o mundo externo.
Proveniente do grego, a palavra trauma significa ferida, que por sua vez, vem de furo. Trauma é ruptura, cicatriz.
Todos se utilizam banalmente desse conceito, sem saber do que realmente se trata. Importante pensarmos no funcionamento da nossa mente antes de abusar dessa palavra.
Vivemos em busca de obter satisfação e nos desfazer daquilo que nos faz mal. Podemos dizer que estamos sempre em busca de obter prazer e nos livrar daquilo que é desagradável.
Em Psicanálise, trauma é definido como um afluxo excessivo de excitação na mente, em relação á tolerância do aparelho psíquico: Tal quantidade de emoção é tão violenta e intensa que somos incapazes de suportar. Isso ocorre, pois a pessoa ali exposta encontra-se despreparada. Logo, a quantidade de sensações e estímulos suscitados tornaria-se maior que o sujeito exposto agüentaria em termos psíquicos.
Na situação traumática, somos afogados por um excesso de emoções; Como uma cachoeira durante a chuva que transborda em nosso interior sentimentos intoleráveis. Essa vivência ficaria armazenada, como uma explosão que tinge nosso mundo interno. Porém, o registro do ocorrido não fica em sua totalidade, tamanha sua força. Embora o estímulo traumático seja reprimido, sobram marcas, detalhes que rodeavam aquela cena. Um cheiro, um som, um lugar, uma cor, contaminados por aquela circunstância. De tudo fica um pouco, já dizia Carlos Drummond de Andrade.
Esse resíduo fica então registrado em nossa trama mental; de tal forma que quando algo se aproxima daquela marca, aquelas sensações que pareciam adormecidas são retomadas. O trauma é uma vivência emocional que muitas vezes parece ter sido esquecida, podendo acordar a despeito de nosso desejo de eliminá-la. Ficamos de alguma forma reféns dessa experiência, aprisionada, congelada dentro de nós, indigesta.
’’..I´ll carry it in my heart”,diz o poema de E. e Cummings- Esse tipo de situação emocional, acaba não sendo expresso em palavras, pois seu conteúdo muitas vezes é tão doloroso que torna-se inominável. O inconsciente então se utiliza de imagens , representações cujo colorido emocional remete aquele momento.
Por isso são freqüentes os sonhos que repetem uma situação traumática. Durante o dia, a mente se dispõe a se esquecer daquilo que lhe feriu. Mas a noite, com a censura adormecida, imagens retornam. Esse retorno é uma tentativa de nosso inconsciente elaborar aquela vivência dolorosa. É como se a noite trabalhássemos na tentativa de digerir aquilo que se passou, já que trata-se d algo intoxicante. No entanto a intensidade do fato é tamanha que para que a mente continue funcionando ao acordar, ele é reprimido.
Recentemente, vi a instalação da artista Rosangela Dorazio que narra uma cena forte, ocorrida entre o muro e a jabuticabeira de uma casa durante sua infância. O que o expectador escuta sobre o ocorrido, carrega sua imaginação com uma intensidade brutal. Ao ouvir o relato da cena, feito por uma contadora de histórias de voz doce e suave é como se fossemos novamente crianças assistindo aquele fato. Somos tomados por um sentimento de cumplicidade e horror. Como se fossemos obrigados testemunhar a cena relatada>. Nossa vontade é de fugir, esquecer aquela história, mas ela fica impregnada, como uma memória que não quer ser esquecida. E que a qualquer momento pode voltar a assombrar , como um fantasma adormecido.
Entre o muro e a jabuticabeira, algo se passou. Eu vejo e me lembro. Eu vejo o muro, eu vejo a árvore, elas me remetem à uma situação. No entanto, não vi, nem estava lá. Pois não agüentei testemunhar aquela cena. Meus pequenos olhos infantis tentaram se afastar, dividir minha mente, fingindo para mim mesma que esqueci.
Mas há algo que se passou, num espaço entre o cimento e as plantas. Ali, nada mais crescerá, está impregnado lembranças. Nada que brotasse naquele canto poderia ser fértil. Aquela imagem dali em diante ficaria em mim impregnada, enrijecida. Pois eu vi, não queria estar lá, mas estava. Não houve escolha.
*texto publicado na revista amarello- novembro, 2012