sexta-feira, 31 de março de 2017

Sobre a teimosia da luz

Foi no filme Jackie que vi uma passagem linda que me fez pensar muito sobre essa história de religião. Ela pergunta ao padre logo que o marido foi assassinado se Deus existia mesmo. Conta que antes da morte do marido , perdeu também dois filhos . Ele responde a ela que quando escurece , antes de dormir se pergunta se o fim da vida se resume apenas á escuridão. Mas que no dia seguinte , quando nasce o sol, teimoso , nas primeiras horas matutinas ,depois de uma noite de pavor , ele insiste em passar um café.Essa insistência da luz em entrar ,seria entao a confirmação de que Deus existe.
Achei essa passagem tão rica. Algo nos faz acordar e seguir vivendo , passando o cafe , cofiando na luz do amanhã. Talvez essa foi a explicação mais coerente do que considero ser a divindade. Divindade é continuar insistindo pela vida , independente do Breu que costuma ser tão assustador.
Tambem gosto muito da passagem da peca as Centenarias na qual a morte diz á uma mãe que suplica pela vida de seu filho :

- Procure um pé de Mandacaru enraizado na casa de uma família que não tenha sofrido a perda de um filho, um ente querido, um pai ou uma mãe. Se você encontrar um lar na qual a dor da perda não tenha chegado, eu deixo seu filho sobreviver.
A mãe procura de casa em casa, e não acha nenhuma na qual a dor não tenha entrado ou pela porta da frente ou pela janela. O que acha é tanta gente para compartilhar sua tristeza , que compreende que não há o que fazer se não resignar-se e compartilhar o fato de que a morte é inevitável e sempre nos alcança.
O texto de Nilton Travesso é muito mais elaborado do que eu consegui reproduzir. Mas nada é mais lindo do que o que essa passagem transmite.
O que ajuda a gente a suportar a dor é saber que ela é universal.
Compartilhar é o caminho para suportar.
Resignar-se á dor é não temê-la. Emprestamos nosso corpo a ela , para que depois de um tempo ela nos abandone. O corpo fica mais forte assim. Cheio de vivências, e finalmente a luz volta , teimosa , insistindo para o tempo passar .

quinta-feira, 9 de março de 2017

Pequenos eventos 
Quando meu pai estava doente já bem no final fui perguntar para a oncologista porque ela tinha escolhido aquela profissão . 
Estávamos as duas no quarto dele . Eu disse a ela que não entendia , que não havia escolhido viver isso na minha família, mas que naquela época todo meu universo girava em torno daquele tema . No entanto , sabia que era uma fase que ia passar . Por isso ficava me perguntando , qual seria a motivação dessa escolha diária: Toda a tristeza de uma doença terminal , todas as manhãs.
Ela me respondeu bastante comovida : 
" Acho que essa é a única área da medicina na qual se comemora os pequenos eventos . Nas outras comemora - se só os grandes progressos . Nesta, são os pequenos eventos que fazem a diferença . Uma pequena melhora , já ajuda . Traz muita alegria, é valorizada . " 
Pensei muito sobre essa fala com relação ao fim de ano . Temos essa mania de hiper valorizar as datas , as festas são sempre as mais esperadas , os aniversários .
Vejo no meu trabalho , como as pessoas ficam frustradas por não terem tido um natal perfeito . Ou um ano novo com uma festa extraordinária . Digna de vestido novo .
Tanta excitação esperando a meia noite que não são raras as pessoas que " queimam a largada " e perdem a festa .
Eu me lembro da minha formatura , da festa . Mas o que eu mais sinto falta da faculdade são as horas de tédio , de riso leve , matando aula na escadaria da PUC .
A amizade se constrói muito mais no dia a dia do que nas grandes ocasiões. Claro que em datas especiais , me lembro dos amigos que estiveram ao meu lado . Mas para que eles estivessem lá , foi preciso um longo trajeto para conquistar os corações que tanto me apoiaram em dias marcantes . E essa conquista se faz nos horários mais comuns.
Também me lembro da minha festa de casamento , mas ela é só uma parte da minha história conjugal , o início , não o todo .
O mesmo se dá no meu ofício . Em Psicanálise são muitos os momentos de silêncios , de acolhimento perante a dor do outro , de impotência . Tudo isso faz parte da criação de uma linguagem paciente analista , vem muito antes de ocorrer os tão esperados insights . É preciso tolerar , aguardar , construir . O que vem bem antes das transformações .
É que a beleza da vida da gente aparece mesmo nos pequenos eventos . É na rotina ( da qual tanto nos queixamos ) que nos estruturamos .
As datas são importantes , por coroarem uma história . Porém são apenas rituais esperados, que confirmam uma conclusão . Só.
Eu tenho uma prima que usa talher de prata em casa todos os dias . Ela me diz que a principal convidada da casa dela é ela mesma . Que os dias da semana merecem o talher mais lindo, não só as festas . Estou de acordo . 
O dia a dia que passa desapercebido é o que tece de fato a nossa alma , nossa história , nossos amores . Nos dá uma moldura de alguma segurança ( por mais que a vida seja imprevisível ) .
Então , volto ao meu sabido pai , que me disse antes de eu me casar : " Sabe , na maior parte do tempo , a vida é morna . Mas ela também é bonita . Vá em frente . "
Um brinde aos dias comuns, mornos . Sem grandes eventos . Pois são eles que nos dão força para suportar grandes mudanças da vida.