terça-feira, 13 de novembro de 2018

AQUI NÃO TEM PROPAGANDA ENGANOSA

Uma carta sem palavra

A idéia quem deu foi a minha supervisora da Especialização. A Maria Elena. Um dia ela disse assim na aula: O que movimenta a vida são os altos e baixos. Não tem jeito. Uma vida só fica em linha reta quando acaba. Pronto: Nasceu assim um trabalho de arte.
Eu precisava dar um jeito de encontrar um eletrocardiograma de uma pessoa morrendo para colocar na parede do meu consultório. Eu queria ser clara com os pacientes, que não oferecia um serviço de uma vida em linha reta, sem quedas. Estável. Achei que se o tivesse estaria oferecendo meu trabalho da maneira mais honesta possível. Não se engana o freguês, afinal.
Animada , comecei a procurar exames póstumos  para enquadrar. Trabalhava no Hospital das clínicas na época e achei que quem sabe um enfermeiro pudesse me vender o eletro de alguém morrendo. O ultimo suspiro. Mas é claro que nunca tive coragem de fazer o pedido. Ficava fantasiando, um dia vou arrumar esse bendito exame e vai ficar lá, de frente para quem entra, enfeitando a parede.
Acabou que um dia, no almoço , contei sobre essa idéia para meu pai. Ele me chamou de louca , mórbida. Disse que ia pegar mal, logo eu, estagiária pedindo exame de desconhecidos á beira da morte:" Isso não se faz, que mal gosto. Além do que é documento do hospital"
Fingi que concordei pois assim que muitas vezes funciono com autoridade. Prefiro ser feliz á ter razão.
Mas em 2011 um AVC  hemorrágico levou meu pai, numa madrugada de junho e minha mãe ligou avisando que estava chegando a hora. Ao entrar no quarto um enfermeiro-anjo imprimia a última batida do coração de meu pai. 
Ele me disse: : "Está estranho esse exame, ainda há um movimento no coração. Espere."
Em algum lugar eu ouvi que a última esperança é teimosa e burra.  Então esperei, como quem espera uma reviravolta.
Até que saiu um exame, com o belo desenho de uma vida indo embora, uma montanha alta, uma curva bem  baixa e uma linha reta. Tinham duas cópias, uma para anexar no prontuário e a última que eu pedi para ficar comigo : Foi a essa a última carta que ele me escreveu. Gosto de pensar que  ele morreu me dando razão e que dobrei ele no último minuto. (Como sempre fiz, diga -se de passagem).
Hoje esse quadro está aqui, numa caixa de acrílico. Recebe meus pacientes que chegam com suas histórias. Tem gente que custa a entender o que é. Um moço do mercado financeiro viu algo relacionado a dinheiro. Um cadiologista custou a entender a mensagem, embora decifrou todas as patologias cardíacas impressas no papel. Cada um vê o que quer. Tem também os que nunca se aproximaram para ver .
Eu só vejo o coração dele batendo ainda no lugar que ele mais amava viver,  no seu consultório.
A Maria Elena eu escolhi para ser a analista da minha mãe e ajudar o coração dela a bater novamente.  Eu a escolhi como um presente para minha mãe e está indo muito bem desde então.

E tem gente que não acredita em final feliz.

Helena Cunha Di Ciero 
Psicanálise