quinta-feira, 4 de julho de 2013

texto publicado na revista amarello #12


O céu de Ícaro tem mais poesia que o de Galileu ? *



O que você faria se só te restasse um dia?
Se o mundo fosse acabar, me diz o que você faria ?
Abria a porta do Hospício
Trancava a delegacia
Dinamitava o seu carro
Parava o tráfego e ria

Paulinho Moska



Domingos de Oliveira no filme Separações  fala que a verdadeira liberdade do homem não é seguir seus impulsos e sim suas escolhas . Porém,  dificilmente essas duas coisas caminham juntas : Uma vez que escolho algo, meus instintos são sufocados de alguma forma.  Escolha e limitação estão sempre entrelaçadas. Qualquer que seja a trilha escolhida , segue dentro de mim uma oportunidade que ficou para trás . Posso ser eternamente grata pelas escolhas que fiz,  , mas inevitavelmente fica um buraco inacabado.
O que aconteceria se fossemos totalmente livres? Sem amarras , sem leis , sem o amanhã? De longe essa idéia parece um sonho, mas se aproximarmos nosso olhar um pouco mais , estamos frente ao caos. Existe algo no limite que me protege, que me ampara , inclusive de mim mesma. Dos meus impulsos. Somos feitos de som e fúria, assim como a vida.
Em O Mal estar na Civilização , Freud sinaliza a importância das leis para a construção da sociedade . Estas seriam responsáveis por frear os instintos agressivos . Esse sentimento nos impulsiona para ir adiante e  lutar . Agressividade é vida : Não se coloca um filho no mundo sem fazer força, e nem terminamos uma maratona ou aprendemos a nos defender sem ela. Também é preciso uma dose de agressividade  para lutar contra uma doença . Por outro lado,  esse sentimento  pode ferir o outro e a mim mesmo .
Existe no homem uma disposição para  tornar-se bárbaro . O indivíduo civilizado trocou  uma parcela de suas possibilidades de felicidade, por uma parcela de segurança – disse Freud nesse mesmo texto
A cultura nos ajuda á transformar nossos instintos . Por exemplo, estou com raiva , descarrego nos esportes , vejo um filme de ação e satisfaço meu desejo de extravasá-la.
 As mesmas leis que nos aprisionam possibilitam a construção de algo . Sem paredes nada se constrói. De alguma forma, nossa sociedade pôde se desenvolver a partir de regras , elas impedem que não fiquemos tão ameaçados. Afinal, como sabemos , o Homem é o lobo do homem .  
 Uma certa dose de limite nos torna menos desamparados , menos expostos.  Para ser livre , devo respeitar algumas regras. Renato Russo dizia que disciplina é liberdade. Concordo. A disciplina nos ampara . Uma boa alimentação  garante uma vida mais saudável.  Falar tudo que penso ás vezes pode  machucar pessoas que gosto. Beber  excessivamente por vezes  traz culpa e ressaca moral . Dirigir em alta velocidade pode causar acidentes. Estudar no tempo certo, garante férias mais longas.
Na mitologia Grega, Dédalo para sair do Labirinto, constrói asas para seu filho Ícaro . Mas lhe diz, não voe muito alto ,perto do sol -pois elas podem se derreter. O filho deslumbrado com a possibilidade de voar, vai muito longe , se aproximando demasiadamente do calor e perde a vida .  Devemos fazer bom uso de nossas asas, para não nos machucarmos .
É só pensarmos nos adolescentes , no quanto  um excesso de liberdade pode trazer consequências irremediáveis. Um jovem sem limite pode se tornar extremamente destrutivo. Isso por que a juventude é dotada de muito poder e onipotência . Por isso quando jovens, flertamos muitas vezes com situações de risco , achando que somos maiores e mais poderosos que os pais ou que qualquer figura de autoridade , até mesmo maiores do que a morte .
Existe também um pensamento que liga a loucura a liberdade, á inconsequência , aos atos . No entanto se é prisioneiro de uma dor incomunicável e intransferível , isso nada tem de livre . O distúrbio psiquiátrico é a meu ver, uma das mais dolorosas doenças , não compartilhada, solitária, triste . Falo isso com conhecimento de causa, durante sete anos trabalhei no Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas.
Numa instalação em Nápoles, Marina Abramovich colocou um cartaz com os dizeres: Façam comigo aquilo que quiserem, rodeada por  uma série de objetos aleatórios , dentre eles um revólver e um batom. A instalação teve fim com a interferência policial, após uma pessoa lhe apontar a arma. O que nos faz pensar no quanto a vulnerabilidadade e a fragilidade  do outro pode despertar os mais diversos sentimentos. Se você me autoriza , até onde posso ir ?   E se você for autorizado até onde pode ir?
Os apaixonados sofrem desse mal, quando se entregam deliberadamente  por vezes despertam no objeto amado uma relação de domínio e desprezo . Ou seja, essa entrega para o outro por vezes desperta nele  sentimentos hostis. Deve ser por isso que depois de um certo tempo nos entregamos com mais reserva, diferentemente do primeiro amor. É preciso que sobre um pouco de mim . Que você não me use a torto direito . Pois uma entrega excessiva pode ser fatal.
 Porém , falar de amor inevitavelmente abriga a idéia da coragem da entrega . Coisa rara . O amor sempre traz consequências. Talvez a liberdade do amor implique em aprender com essas consequências .É preciso sair de si sem covardia, para que esse aprendizado ocorra. Sem nos aprisionarmos ao ressentimento, quando essa história acabar.









Helena Cunha Di Ciero é psicanalista , membro filiado da Sociedade Brasileira de Psicanálise de Sao Paulo. E se sente muito livre quando escreve sobre as coisas que se passam dentro dela.

texto publicado na amarelo#12 - Liberdade


Quando deixei de de te amar



 ‘E ao acordar a uma hora da madrugada, em desespero
Eis que as três horas da madrugada eu acordei e me encontrei. Fui ao encontro de mim, calma alegre ,plenitude, sem fulminação
Simplesmente eu sou eu, você é você
É lindo , é vasto, vai durar
Eu não sei bem o que vou fazer em seguida…
(…) Eu sou antes , eu sou quase, eu sou nunca.
E tudo isso eu ganhei ao deixar de te amar.
Escuta! Eu te deixo ser.
Deixa-me ser.”
Clarice Lispector



Quando finalmente deixei de te amar,  podia sair a vontade na rua  sem o medo de te encontrar . Caminhava tranqüila , sem temer ser pega de surpresa. Os carros não eram mais iguais ao seu .
Eu já não era mais prisioneira de tudo que me lembrava você . As músicas não eram mais marcas da nossa história , ou  me davam recados malucos do destino. Simplesmente tocavam , enchendo meu dia com uma nova melodia . Já não me atingiam como flechas em forma de notas musicais . Tocavam - sem me tocar - como era boa essa sensação de ter finalmente mudado de estação .
Meu telefone voltou a ser só um aparelho e não mais o portador das notícias do dia . Antes , se você ligasse até o sol me aquecia diferente .  E se não ligava , nem  a beleza das flores me afetava . Nada que não fosse você me interessava .
Agora , já  não tinha medo do meu coração paralisar quando te visse - ele já estava em um ritmo mais delicado , menos frenético , menos assustado . Ele era meu novamente e apenas era um orgão dentro de mim para ajudar meu sangue a circular.  Um orgão do qual já nem me lembrava tanto. Dizem que só lembramos de alguma parte do corpo se temos dor ( por exemplo , o ouvido só lembramos de sua existência quando ele dói.) Então meu músculo cardiac já não doía, estava forte , pronto para uma nova caminhada .O oxigênio era meu , não mais era nosso . Já não vivia para você , naquele sufoco .
As horas também já não eram mais suas . E confesso que agora ,pouco importava se o relógio marcava horário igual . Já não me preocupava se eu estava em seus pensamentos . Você não morava mais em mim , e isso me trazia uma leveza  absurda . Eu era grata por tudo o que vivemos , sem dor . Sem desejo de revanche  ou auto piedade .
No meu peito  já não havia mais  espaço para vingança  . No espelho eu já não treinava conversas imaginarias . Você pôde enfim partir . Eu aceitei, depois de muita luta .
A vencedora no caso era eu . Já podia vislumbrar um futuro , contemplar o presente . Meus olhos não visitavam mais as lembranças . Simples assim . Eu parti .
Com o mesmo coração que entrei . Agora mais rica com tudo o que vivemos .  E o fato de você ter mudado minha vida me deu a chance de estar pronta para amar outra vez. Deixar de te amar foi azul .
Foi um novo horizonte que surgiu . Agora só meu .

Que alivio .





Helena Cunha Di Ciero é Psicanalista e acha que que só o amor liberta