segunda-feira, 29 de junho de 2020

série pandemia

A TEMPESTADE
O anúncio de uma tempestade escurece o horizonte. A névoa acinzentada nos cega e tudo que vemos é o ruído da ventania. Olho pela janela da minha casa e me pergunto sobre a salvação, se ela vem após a chuva.
Por hora ela ainda não chegou.
Todo dia durmo e acordo com medo e sei que não estou só, quando percebo isso no olhar das pessoas que eu amo. Gosto da minha vida com elas e temo por elas.
Temo de tal forma que me falta o ar, ao pensar no que pode vir a acontecer.
Sinto-me paralisada diante dessa chuva chegando e respeito seu tamanho.
Sei sim que ela é maior que eu. Por isso me aquieto.
Dizem que nas artes marciais saudamos o inimigo curvando-nos a ele, reconhecendo sua força.
Pois bem, reconheço que algo invisível pode roubar aquilo que me é precioso.
Por isso luto.
Luto em casa, limpando o que posso.
Luto me sacrificando todos os dias ao não abraçar minha mãe. E ao vê-la numa tela. Mas ela ainda está lá , penso aliviada.
Luto fazendo jantares virtuais com as amigas que adoro.
Luto aguentando meus filhos entediados, correndo pela sala, saudosos de seus amigos.
Luto enjaulada, é só o que posso fazer.
Mas ainda posso, então me vejo grande.
Luto ligando para quem eu prezo pedindo que se cuidem. As vezes me sinto feito bêbada que fica dizendo eu te amo toda hora desnecessariamente. Digo aos professores que tive que os amo, supervisores, minhas ex analistas , aos médicos que já me cuidaram: Cuidem-se.
E nessa fala percebo que lhes agradeço por estarem vivas. Por estarem em minha vida até agora.
E isso tem sido o bastante,
Essa semana começou com presos soltos e uma sociedade encarcerada. Essa semana começou com anuncio de óbito.
Mas essa semana começou, ainda assim. O sol chegou na minha casa pela manhã e eu pensei, por enquanto está tudo bem. E esse “por enquanto “ foi suficiente. E assim será.
Uma paciente médica me disse que estar em quarentena é uma sorte. Como ganhamos de nossos pacientes, eu pensei. E nessa frase ganhei um por enquanto. Um outro paciente me disse que era seu aniversário e ele não ia comemorar com os amigos, mas que dançaria com a esposa na sala. E esse foi meu por enquanto.
E com todos eles, hei de fazer uma eternidade.
Por que vírus são sazonais , mas meu amor pela vida dura enquanto ela existir.

HELENA CUHA DI CIERO
PSICANALISTA

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Beijo de mãe não cura tudo, mas alivia.

Ando me lembrando constantemente do filme “a vida é bela “ em que o pai disfarça a situação do campo de concentração com leveza e alegria .
Talvez esse seja nosso único e possível ato heróico , nesse momento de tanta impotência .
Trazer alguma leveza nessa tentativa de enganar a dor e a tristeza daquilo que estamos vivendo.
As vezes eu grito : quem vai sentir saudade da quarentena ?
E eles dizem :
- Euuuu !
E eu sorrio achando que estou fazendo a coisa certa .
Mas na verdade eu nunca tive tanto medo da vida. Nem quando eu era pequena.
Pensando bem , nesse momento me sinto outra vez pequena .
Hoje no jornal tinham caminhões de frigorífico em frente ao hospital.
Toda noite uma cena assustadora aparece para ilustrar aquilo que não tem nome.
E essas cenas voltam quando eu fecho os olhos.
Essa semana eu dormi com os dois no quarto , fizemos um acampamento , colchões no chão. Como eu fazia quando era criança e acordava assustada.
Era eu, adulta quem precisava sentir segurança nesse momento.
E quando eles acordaram gargalhando o medo que eu passei de madrugada ,ficou atenuado.
Foram eles meus heróis dessa vez .
O meu colchão no chão.
E eles nem sabem .
Fica então registrado , pra quando vocês crescerem e estiverem estudando com seus filhos uma epidemia misteriosa que ocorreu em 2020, vocês foram a vacina da mamãe .


Helena Cunha di Ciero
psicanalista

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A NOSSA HUMANIDADE
Helena Cunha Di Ciero - SBPSP
"Nossa felicidade está para sempre ameaçada, pois o bacilo da peste não morre nem desaparece, pode ficar dormente por anos e anos
em móveis e roupas aguardando sua hora em quartos, em porões, em baús, em lenços e em pedaços de papel. E virá o dia em que ... para desgraça e ensinamento dos homens, a peste acordará seus ratos e os mandará para morrerem numa cidade feliz". (Albert Camus, A peste, 1947)
Estamos todos presos. Curiosamente, encarcerados em casa nos sentimos livres de adoecer. Mas, ainda assim, doentes de alguma forma, uma vez que estamos privados daquilo que nos mantém sãos. Os amigos de fim de semana, os abraços apertados em quem amamos. Nunca a pele foi tão importante e tão perigosa. Estar em casa nesse momento é nossa única arma de luta junto ao sacrifício que fazemos ao nos distanciar de quem amamos.
Quem diria que um dia a distância seria prova de amor?
Diz Valter Hugo Mãe, em A desumanização: “o inferno não são os outros, os outros são o paraíso. Um homem sozinho é apenas um animal, a humanidade começa nos que te rodeiam, não exatamente em ti. Ser-se pessoa implica a tua mãe, as nossas pessoas o desconhecido e sua expectativa”.
Hoje o que importa é estar saudável e zelar pela saúde daqueles que amamos. E,nesse cuidado, vem a necessidade de compartilhar. Compartilhar noticias, remédios promissores, campanhas de auxílio. Empatia é a palavra da vez. É preciso olhar o outro, oferecer ajuda ao vizinho idoso, preparar uma “quentinha” para aquele que está só e poupar os exaustos profissionais da saúde.
Diz Freud em sobre o Narcisismo (1914): “É preciso amar para não adoecer, estamos destinados a cair doentes se em consequência da frustração formos incapazes de amar” e Renato Russo em 1980 cantou: “ É preciso amar as pessoas como se não houvesse amanhã”. É preciso cuidar hoje, o amor, o cuidado, nunca se fez tão urgente. O que temos é o agora: hoje eu ainda não adoeci, só por hoje aguentei outro dia em casa.
Foi no Peru que entendi a força da palavra compartilhar. Dizem os Incas que, quando na Cordilheira dos Andes você cruzar com um transeunte e tiver alimento para oferecer, é preciso compartilhar, como uma forma de gratidão por aquilo que a pachamama (mãe-terra) ofertou. Assim, aquele que caminhava se alimenta, e aquele que estava só, sente-se acompanhado.
Estender a mão fisicamente não é possível nesse momento, mas oferecer ajuda sim. E isso tem sido a parte mais bela desse horror que estamos vivendo.
Em que momento nós humanos arrogantes esquecemo-nos que a impotência faz parte da experiência de estar vivo? Atualmente todos estamos curvados a algo tão poderoso quanto invisível. Nossa geração vaidosa do selfie, tão desesperada para sentir-se vista, hoje se esconde em casa buscando proteção. Ao mesmo tempo, até as redes sociais mudaram: o look do dia perdeu o sentido. A bolsa da moda, a maquiagem, nada disso tem serventia neste momento. As lives estão mais frequentes, afinal, estamos vivos e é preciso compartilhar essa experiência. A nova #hasthag é: compartilhe seu dom. O luxo agora é estar vivo, mesmo que de chinelo e de pijama. Luxo é ter abrigo. Saúde. Alimento. Máscara.
Na semana passada, fui pegar o tal álcool gel e, na volta, a rua do meu itinerário estava fechada. O guarda de trânsito veio na minha janela avisar que a rua estava bloqueada. Agradeci, e sem pensar muito, disse: saúde a você e para sua família. Meus olhos se encheram de lágrimas. Percebi que ele ficou também comovido. Enquanto dirigia, fiquei pensando: quando, na minha vida, eu teria tido a chance de desejar algo com tanta profundidade a um simples desconhecido?
A proximidade da morte também nos traz crescimento, além da dor. Nem toda a privação é perda apenas. Talvez a única forma de tolerar o que estamos vivendo seja buscar sentido nessa privação. Ainda que o sentido seja nos revelar num espelho, o quanto estávamos distantes do que é ser humano de fato, é o quanto vínhamos andando afastados da qualidade que essa experiência pode nos proporcionar.
(Os textos publicados são de responsabilidade de seus autores).
Imagem: Schauspielhaus Düsseldorf / 2012. Candida Höfer (artista).
Os ensaios também são postados no site da Febrapsi. Clique no link abaixo:

Observatório Psicanalítico - 158/2020
Ensaios sobre acontecimentos sociais, culturais e políticos do Brasil e do mundo.

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TUDO RAIA

“Sei que canto. E a canção é tudo.
Tem sangue eterno a asa ritmada.
E um dia sei que estarei mudo:
– mais nada.”
Cecília Meirelles
*Helena Cunha Di Ciero
As notícias são assustadoras e a iminência de que algo terrível está para acontecer nos assombra.  Dizem que o pico está para chegar, vejo as curvas da pandemia em ascensão e me lembro da Noviça Rebelde subindo a montanha com seus sete enteados fugindo do nazismo. Ela que me acolheu em tantas tardes na infância. Acolhe, hoje, meu terror, quando olho a curva de infectados subindo e penso em Climbing the Mountain tocando de fundo, um horizonte azul se anunciando e a promessa de liberdade. Assim terminava o filme que eu adorava em pequena. Será que isso vem depois do pico da montanha? Do pico da doença? Haverá um horizonte azul?
Não sei, o gráfico sobe e enquanto ele sobe, meu coração pulsa. The Hills are alive with the sound of music, canta a Noviça na primeira cena do filme. As montanhas estão vivas: e eu também. Então, sigo em frente.
Confesso, porém, que abro os olhos já há algumas semanas e repetidamente sopra a canção em pensamento: “Dorme minha pequena, não vale a pena despertar”, cujo título, (enquanto escrevo me dou conta) é: “Acalanto para Helena”. Meu nome. Eis minha canção de acordar, meu autoacalanto. Então eu canto. Afinal eu canto porque o instante existe, assim dizia Cecília Meirelles. Inevitavelmente, desperto, o dia raiou. Nesse instante estou a salvo.
Independente do coronavírus, da Covid-19, doença causada pelo Sars-Cov-2. (palavras que vim conhecer há menos de dois meses, mas que hoje fazem parte do meu vocabulário com mais constância do que nunca) o dia teimoso insiste em raiar. Meus olhos se abriram, mesmo com medo.
As manhãs nos fazem entender o raiar do sol como uma promessa de esperança.  A doença teima em existir, assim como o sol. Marina Lima diria: “Se tudo cair, que tudo caia, pois, tudo raia”. Em “Sobre a Transitoriedade”, Freud nos traz a ideia dos ciclos da vida como sendo parte de sua beleza. Estamos num ciclo de pandemia, mas assim como passou o nazismo, as guerras, a ditadura, a peste negra, isto também vai passar.
Há algum tempo, conheci o artista japonês On Kawara cujo trabalho consistia em mandar, durante muitos anos, telegramas para os amigos e colecionadores com a frase: I am still alive.  Vi essa exposição alguns anos atrás e a força dessa frase me tocou profundamente. I am still alive.
EU AINDA ESTOU VIVO.
Still.
Ainda.
Ainda pode parecer pouco, mas é um lugar seguro nesse instante. Ainda, hoje, é território sagrado.
Caetano também cantou, enquanto exilado: I’m alive and vivo muito vivo, vivo, vivo Feel the sound of music banging in my belly know that one day I must die I’m alive.
E em interpretação dos sonhos Freud coloca que a fantasia é o que nos faz tolerar a realidade e que o sonho existe para que o indivíduo consiga suportá-la. Seguirei cantando enquanto tiver voz. Seguirei procurando pelo sonho. Colocando melodia em gráfico de morte. Seguirei procurando pela pulsão de vida. Ainda que a morte bata na porta da minha casa.
Hoje não, Sr. Corona. Hoje, estou ocupada, hoje não posso te atender.
*Helena Cunha Di Ciero é psicanalista, membro Associado da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo (SBPSP), especialista em Psicologia Psicanalítica pela Universidade de São Paulo (USP).

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Escrevo por que não me caibo .
Escrevo para ser livre .
Escrevo para me proteger , para me vacinar , para entender , para elaborar .
Escrevo para não deixar de caminhar .
Escrevo para respirar
Escrevo para não me isolar
Escrevo para raiar .
Escrevo pois é o que vai ficar.

Helena Cunha Di Ciero

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NOS DERAM ESPELHOS E VIMOS UM MUNDO DOENTE
A cidade estava tão quieta hoje que dava para ouvir o barulho assustado do meu coração.
Respirava com lamento , mas ainda me sentia viva.
Culpada por esse privilégio, entre tantos outros, que nessa semana estavam tão evidentes.
O silêncio denso contava alto e em bom tom que um pedaço do mundo estava adoecido.
A dor está no ar .
O medo está no ar.
A miséria está no ar.
O descaso está no ar.
O vírus está no ar.
( Eu penso enquanto caminho )
A cidade muda no sábado à tarde , que mais parece domingo .
Mas o que parecia calma , era na verdade desalento.
Tem sido domingo há três meses .
Três longos meses.
Desde quarta feira de cinzas .
Semanas que revelam uma metrópole desprotegida , assustada.
Parece cinza.
Ainda que tenha sol .
Chegou outono , folhas no chão .
Nas ruas as pessoas tem medo de se aproximar .
Nem se olham de pavor .
Envergonhadas por sentirem repulsa umas das outras: “ Será que ele carrega o vírus ?” - Penso ao cruzar um amigo na rua e de longe acenar .
Tudo fechado.
Parece Terra de ninguém.
Mas é minha terra. Onde eu nasci .
Tenho que me adaptar.
Essa noite choveu gelo.
Deve ser dos corações dos insensíveis aos números . Assim espero.
A semana começou com um homem suplicando para respirar enquanto outro colocava o joelho brutalmente em seu pescoço.
Eu li a notícia com pressa pois não aguentei . Mas a notícia virou protesto , entrou por todos os lugares , mesmo eu tentando mudar de canal .
Então sonhei com George .
George no chão , sem ar.
Li em algum lugar que ele gostava de levar as palavras de Deus para as pessoas .
E eu não sei onde Deus anda .
Mas deve estar desapontado, certamente.
A semana terminou com uma criança caindo de uma janela por uma crueldade de um adulto .
Miguel no ar , sem chão .
Mas eu não também não aguentei ver o vídeo.
E George dizia I can’t breathe.
E tantos no mundo agora também não podem respirar.
Falta ar.
Miguel dizia , quero minha mãe .
Em mim tem faltado coragem para simplesmente ler as notícias .
Respiro antes de pegar o jornal.
Assumo minha covardia .
Então escrevo para enfrentar.
Eu também tenho medo de respirar e nunca quis tanto abraçar minha mãe.
Helena Cunha Di Ciero/ psicanalista

quarta-feira, 18 de dezembro de 2019

TEXTO PUBLICADO NA REVISTA AMARELLO #30 ILUSÃO

CRIPTONITA

Me certifiquei que comeram legumes. Orgânicos. Para evitar agrotóxicos. Que perigo. Passei filtro neles, antes da praia. O buraco da camada de ozônio só cresce, li no jornal. Protetor é para evitar câncer, achei uma camiseta que tem FPS 50, comprei logo duas. Coloquei rede na janela. Para evitar que caiam lá embaixo. Tears in heaven foi a canção que Eric Clapton compôs para o filho que caiu da janela. Embalou minha adolescência. Enquanto eu dançava bailinho e começava a minha juventude essa era a trilha sonora das festas . Ingenuidade minha, nem percebia do que se tratava . Estava tão distraída com a vida que me convidava para dançar , deslumbrada , que quase me esquecia que também existe esse negócio chamado morte.
A empresa que contratei para a rede chamava alguma coisa Angel. Tem que ter. Eu que não fico sem esse anjo da guarda comigo chamado rede de proteção. Me dá arrepio ouvir essa música no rádio depois que eu pari. De vez em quando ela aparece. Sempre me emociona. Como esse homem conseguiu, meu Deus, cantar outra vez? É possível voltar a ter voz com um impacto desse na vida? Não sei. Não quero saber. Sempre tento mudar de estação . Mas a música é forte demais , permanece . É que a melodia da morte nunca deixa de estar à espreita . Como uma música que fica sempre de fundo .
Sei que cobri-os a noite para evitar pneumonia. Fechei a janela por causa da ventania. Saí correndo no meio da madrugada para acolher um filho que teve pesadelo. Levantei com tanta rapidez que travei o pescoço. Está tudo bem. Era só um sonho ruim. Voltemos a nos distrair com o cronograma do dia seguinte. Voltamos a programação normal da vida.
Dei também a vacina de sarampo, a terceira dose, já que há uma epidemia voltando, minha sogra falou. Própolis garante uma melhora da imunidade, assim eu li numa notícia do mercado de comidas naturais da esquina e minha amiga confirmou. Lá mesmo onde compro macarrão integral para evitar a farinha branca, que pelo que dizem é um veneno. Não custa tentar. Eu estava tão atrapalhada essa semana que nem fiz a inalação direito na minha filha mais nova, conforme o pediatra orientou para que o tempo seco não lhe cause alergias respiratórias
Quando teve a epidemia de ZIka comprei mais de 10 repelentes de uma só vez. Paguei o maior mico na farmácia com uma cestinha que tinha 10 exposis, que era o único eficaz para dengue, tal qual li numa matéria da revista.
Fui também a primeira da fila da vacina de gripe no Cedip para evitar um surto de H1n1 que acabou de ocorrer. Eram 7.50. Estava eu, minha mãe de 80 anos, as crianças e meu marido. Por que a pressa em plena segunda? Me perguntava meu marido. Eu não respondi na hora pois estava preocupada em onde eu tinha guardado o papel do manobrista, como sempre, mas a verdade é que eu tenho pressa em fugir da morte, por isso corro.
Eu tomo banho depois dos velórios, tiro sapato. Quero tapeá-la. Quero ela longe da minha casa. Quero combatê-la embora eu saiba que eu estou fadada a perder essa luta no fim do meu jogo. Eu tenho certeza que ela é esperta, entra no buraco da fechadura, pela janela, pela fresta da porta .
Na semana passada outro susto: Chegamos a tempo no pronto socorro no meio de uma crise de Laringite do meu mais velho. Eu achei que ele ia parar de respirar. Ufa. Deram remédio, voltamos para casa. Dormi calma. O fantasma daquele dia tinha dormido. Dormi, triunfante: Enganei você, velha senhora. Não foi dessa vez que a morte nos encontrou. Consegui me esconder direitinho .
Dessa vez a ambulância dobrou a esquina. Fiz um sinal da cruz quando ela passou. Que cheguem a tempo na casa do doente, pensei solidária. Ao mesmo tempo em que comemorei, egoista, que dessa vez não foi comigo. Entrei no supermercado, atendi o celular. Não é comigo dessa vez. Posso comprar carne para o almoço com calma. Para ela não tem vaga na porta de casa. Hoje não .
Eu não vou conseguir proteger vocês para sempre, meus filhos. Mas eu queria. Então enquanto eu posso faço esses paranauê, que no fundo não adiantam tanto, estão além do meu controle, mas me dão a ilusão de que nada de mal vai chegar perto de vocês. Eu queria ter a certeza que ninguém vai quebrar o coração de vocês. Que vocês nunca vão ver no canto de uma festa o amor de vocês gargalhando e jogando a cabeça para trás com outro alguém. Queria também que vocês nunca fossem traídos, maltratados, excluídos. Que nunca sofressem um assalto. Um assédio.
Que nunca recebessem a notícia de que alguém que vocês amam está morrendo.
Enquanto eu puder eu vou lutar para enganar essa nossa inimiga. Vou viver para tentar tapear a velha senhora. Tamparei os ouvidos para não ouvir sua voz, tal qual Ulisses fez com suas sereias. E nessa tentativa ilusória de drible, vou me movimentando. Construo muros, mudo de casa, trabalho, produzo, transito, sem me paralisar. Amo vocês com mais força: Fecho as janelas. Faço inalação. Blindo o carro se preciso for. Tenho pressa, tenho urgência. Ser a mãe de vocês me criou a maior de todas ilusões: a de que eu posso tentar ser super heroína. Foram vocês que me ofereceram essa coragem. São vocês meu amuleto . E eu sei que dentro vocês, viverei para sempre. Serei imortal, finalmente, nessas memórias que construí .
Essa luta é o meu único caminho possível .Ainda que eu saiba que a maratona termina de frente com essa tal bandida. E que ela vai roubar minha tão suada medalha.

Por isso, corro demais.


Helena Cunha Di Ciero Mourão é Psicanalista. Membro filiado da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo. Especialista em Psicoterapia Psicanalítica pela Universdade de São Paulo
Tenta cuidar de desilusões , ressignificar  ilusões , todo dia no consultório.
E no resto do dia tenta ser a Heroína de duas crianças .
hcdiciero@gmail.com
Agora eu era o herói e meu cavalo só falava inglês


Quer me ver nervosa como mãe e psicanalista que sou - que por sinal são as duas coisas que eu mais gosto de ser nessa vida - é quando vejo criança trocando celular por brincadeira. Vídeo no youtube por esconde-esconde, videogame por pega-pega, boneca por gato Tom. Quase morro de desgosto quando vejo um grupo de crianças juntas, cada um no seu tablet, isolados e sem trocarem entre si, acomodados numa almofada de sofá, num silencio de desvitalização que mais me assombra do que aquieta. E me sinto profundamente culpada quando me percebo confortável numa cena dessas.
Olho ao redor, “Todos estão surdos?”  como diria Roberto Carlos, ninguém se entristece com crianças abduzidas por uma tela de celular? Talvez eu esteja exagerando, mas sinto uma revolta brutal quando percebo que há um absoluto silêncio na sala onde deveria ter ruídos curiosos de vidas pulsantes que acabaram de começar. Como se nessas horas estivesse testemunhando um funeral precoce do pedaço mais colorido da vida: A imaginação.
Eu que sou calma, saio do sério mesmo. Tiro o celular-alucinógeno, aguento birra e gritaria com xingamentos de “sua chata” e como num passe de mágica: Bibibidibobidibom, vejo minha sala virar faroeste, crianças batendo portas, correria, bagunça. Ufa!  Eles estão vivos! 
Claro que não dá para abrir mão da tecnologia, é um contexto no qual estamos inseridos, mas eu tenho a impressão que cada vez mais ela é usada como sossega-leão para as crianças.  Tipo uma chupeta eletrônica. Tornando secundário a criatividade, algo extremamente vital cujo potencial é transformador.
No meu álbum de retrato interno da minha vida infantil estão presentes os lugares em que estive, algumas viagens, a pitangueira da casa da minha avó, a piscina azul, minha escola maternal, minha amiga Ju, mas principalmente: As brincadeiras. 
Cansei de fazer festa de casamento para Barbie, decorar a casa do Ken com propagandas de miniatura de revista da Editora Abril, que seriam usadas como objeto de decoração na a sapateira da minha mãe - que virava um loft chique e charmoso. Enquanto isso, minha Barbie dava lindas festas na piscina azul que fazia bomba de espuma. Eu mesma @adulta @real @oficial nunca fui em nenhuma pool-partymas a minha Barbie era a rainha desse evento, que ocorria todo sábado na minha varanda e durava horas.  
Pronto, em dois minutos de texto, meu coração ficou cheio de lembranças num domingo triste de chuva e me vi sorrindo comigo mesma enquanto revivia um pedaço da minha história navegando pelas minhas memórias. Para isso serve a imaginação, traz um conforto para a gente mesmo, uma sensação de aconchego e acolhimento.
 O que me leva a seguinte reflexão: Do que será que serão feitas as memórias dessa criançada que vive embebida no mundo virtual? Será que suas saudades serão feitas de pixel?
Não sei. Sei que lá de onde eu venho brincadeira é coisa séria. Para nós, psicanalistas, o brincar nada mais é do que o trabalho da criança. Isto é, brincando ela elabora situações importantes, conflitos emocionais, questões, faz pesquisas sobre seu corpo, aprende a comemorar a vitória de um jogo assim como a resignação necessária para lidar com as perdas. (Pedaço que é difícil até para os adultos, imagine com as crianças).
De acordo com Winnicott, em seu texto: O Brincar e a Realidadeé através da apercepção criativa, mais do que em qualquer outra coisa, que indivíduo sente que a vida é digna de ser vivida. Portanto, é a partir da brincadeira que a criança se adapta a realidade. É como se o brincar fosse uma forma da criança cuidar de si, de se tratar.
Certa vez uma paciente contou-me que quando mudou de país encontrou no lixo uma casa de Barbie, com a qual brincava para dar conta da saudade que sentia da casa de onde vinha. Claro que isso não era feito de forma intencional, mas de alguma forma ela escolheu inconscientemente um objeto para dar conta de uma angústia.
Freud observando seu sobrinho jogando um carretel percebeu que nessa brincadeira havia uma comunicação inconsciente, o carretel ia voltava assim como a mãe que saia e voltava. E nessa brincadeira havia, portanto, uma elaboração de uma ausência.  Melanie Klein foi quem começou a entender que era possível fazer um trabalho psicanalítico com as crianças entendendo o brincar como uma comunicação de questões inconscientes. E começou a trabalhar “ouvindo” as brincadeiras dos pacientes á partir da escuta psicanalítica. 

 A noiva do caubói era você além das outras três

A brincadeira é território da fantasia e por isso deve ter a marca da liberdade para que sentimentos possam ser expressos em sua totalidade. Isto é: Tanto os bons, quanto ruins. Sua finalidade é dar conta de nosso desamparo. Por isso o nome: BRINCADEIRA. Ponto. 
Com isso, gostaria de colocar um ponto que considero crucial: O brincar precisa ser livre. Trata-se do lugar do sonho, onde tudo pode acontecer. É possível ser casado com três, ser bedel e também juiz. Não é preciso haver uma coerência, um sentido, este é dado pela própria criança, que é quem governa e faz a constituição do território do brincar:  E Pela minha lei, a gente era obrigado a ser feliz
Não se censura a brincadeira. Nós adultos, vemos uma criança brincando com uma arma de plástico e nos assustamos: Estaríamos incitando a violência? Perguntaria uma tia no almoço de natal.  Pelo contrário, para a criança a arminha pode ter outra representação, assim como a espada. Pode ser algo do masculino e não do ódio. Não adianta olhar para as crianças com nossos olhos de projeção. Muitas vezes a agressividade está em nós, que os enxergamos como nossa extensão.  
Isso significa que precisamos estar atentos pois reprimindo um afeto, podemos estar prejudicando uma criança. Compreendemos a mulher adulta que a pode ficar com raiva do ex e picar as fotos, mas as coitadas das crianças que acabaram de ganhar um irmãozinho não podem quebrar a cabeça da boneca-bebê quando raivosas. Nós, maiores de 18 podemos nos deliciar com um filme do Tarantino se vingando dos nazistas mas as nossas crias tem que ser essencialmente boas, puras e ingênuas. Que falta de generosidade a nossa. Exigir das crianças algo muito civilizado é na verdade a grande violência. Criança dá trabalho, ponto. E por trabalho me refiro á trabalho psíquico.
Mesmo os contos de fadas são repletos de sentimentos hostis, assustadores, angustiantes. De que outra maneira poderíamos apresentar o mundo real se não usássemos desses símbolos para as crianças?
  

Para lá deste quintal era uma noite que não tem mais fim

 Recentemente, revi “A noviça rebelde” com meus filhos e me dei conta de que o filme é de fato atemporal e genial ao mesmo tempo pois é uma maneira muito delicada de apresentar para as crianças o nazismo. Assim como a bruxa da branca de neve é a encarnação da inveja e o Capitão Gancho luta contra o tempo já que o crocodilo tic-tac refere-se a dor do envelhecimento. A grande questão das histórias é que elas possibilitam a reflexão, a partir da famosa moral da história. 
Por isso vale pensar que quando proíbo uma brincadeira estou proibindo que a criança reflita sobre algo que a angustia, que elabore um sentimento. Ou seja: estou represando um afeto que pode a intoxicar no futuro. É que aquilo que é reprimido tende a voltar com muita força, de acordo com Freud (Obviamente, que excluo aqui brincadeiras que coloquem em risco a criança).
É também em Sobre o Narcisismo que o pai da psicanálise coloca algo muito importante: Os pais vêem no filho um reflexo de si mesmos e por isso esperam de suas crias, algo muito puro, bom e sem maldade, algo asséptico. As crianças seriam condenadas então á reparação de seu narcisismo perdido ou seja tem como obrigação a realização dos desejos que lhe foram negados pela realidade, a menina deve então ser a reencarnação do sonho de princesa da mãe, enquanto o filho deve ser o jogador de futebol que o pai não conseguiu ser.  Só que criança também é gente, e precisa acima de tudo, ser compreendida.
 Hoje o que vemos é uma higienização da infância. Crianças devem ser seres puros, iluminados, o lobo mal é lobo bom e por aí vai.  E essa criança acorda adolescente do sonho da Bela adormecida, furando o dedo na dura realidade. E se assusta. E sangra. 
Contudo, já dizia um certo iluminista que o homem é o lobo do homem. E ás vezes os adultos agem mais como saturno que devora o próprio filho do que como fadas madrinhas que lhes oferecem o encanto de viver. 




Helena Cunha Di Ciero Mourão
Psicanalista e Editora convidada da Revista Amarello – Tema : Infância


segunda-feira, 4 de novembro de 2019

Flor da solidariedade 
Finados é dia de visita. Vira uma nova tradição familiar, depois que alguém que a gente ama vai embora. Levar flores em dia de finados, escolher um belo arranjo e contar para quem partiu sobre nosso amor que continua . Ainda que na ausência.
Minha avó dizia que em finados sempre chovia. Eu ficava pensando , de pequena , que eram os mortos chorando de saudade lá do céu . Como uma espécie de reconhecimento da tristeza que deixaram. Mas a minha avó não conheceu o aquecimento global e o fato é que nem sei se chove em finados mais.
Eu sei que nesse dia as visitas viram reencontros bonitos e tristes .
Com o tempo viram dias de ternura.
Meu filho um dia me disse que quando a gente morre não faz aniversário de Mickey ou de Pirata , faz aniversário no cemitério.
Aprendi a ver finados como um dia mais florido com a ajuda da passagem do tempo.
Num de meus primeiros finados chorei tanto , tão profundo que fiquei um tempão no carro com a cabeça afundada na direção . Até que ouvi alguém bater no vidro do carro . Me assustei , era um mendigo. Disse que não tinha dinheiro mas ele respondeu :
- Faz tempo que seu finado se foi ? Eu sei o que a senhora está sentindo , já perdi meu irmão . Vai melhorar , dona.
Foi uma cena tão linda que parei de chorar na hora. E sorri para ele , agradeci e tive uma enorme vontade de abraça -lo . Éramos os dois feitos da mesma carne , a carne da saudade .
Sorri e fui em frente liguei o carro. Já era hora de voltar . O cemitério ituano fica mesmo numa avenida chamada “avenida da saudade”. Mas era hora de pegar outra vez a estrada da vida.E seguir em frente.
Lembrei da minha Orientadora Ana Trinca que me contou certa vez que todo dia um caminhão de lixo passava pela porta da casa de sua neta pequenina e levava uma flor para ela .
Nos anos seguintes não vi mais eu vi o mendigo. Mas naquele finados , fui eu quem ganhou uma flor: A flor da solidariedade .
Por uma coincidência linda , meu pai me chamava de flor
.

sexta-feira, 2 de agosto de 2019

SOBRE OS DOIS ADOLESCENTES QUE ESTA TARDE ATRAVESSARAM A RUA DE MÃOS DADAS –




Foi depois do fim das aulas.
Passaram o portão de ferro da escola
e deram as mãos
para atravessarem a rua.
E, de mãos dadas, formaram
uma corrente
tão poderosa, tão compacta,
que o trânsito teve mesmo de parar
e ficou completamente imobilizado. 
Não vou ceder
agora à tentação
de afirmar que assisti
à materialização de um milagre,
afinal é coisa
que deve estar sempre a acontecer,
em algum lugar, ao fim
da manhã ou da tarde, logo
depois das aulas,
dois adolescentes dão
as mãos, atravessam a rua, bloqueiam
a circulação rodoviária
de uma cidade.
Mas pensa nisso por um segundo,
pensa na força dessa corrente.
 Luís Filipe Parrado




AURORA
Helena Cunha Di Ciero Mourão

Outro dia mesmo era eu sentada no chão do aeroporto jogando truco, pensei, quando encontrei um bando de adolescentes sentados numa típica viagem escolar, nem aí para a hora do Brasil, na calçada com seus telefones celulares tocando música sertaneja. Sorrindo com leveza, zombando uns dos outros, coloridos pelo viço, pelas tatuagens. “Ei, espere, já fui uma de vocês” – tive vontade de dizer para aquela plateia nada interessada naquela mãe de duas crianças que faziam birra na calçada, exaustas pelas horas de voo. Essa sou eu, constatei.
Foi assim, de repente, que cresci e virei gente grande. Ali no espelho, eu olhei e deixei de ver a adolescente que um dia eu fui. Na verdade, hoje até estranho essa moça que eu vejo nas fotos tão cheia de sonhos, que achava que a vida com ela seria mais doce, menos dura, mais generosa. Tinha algo em mim que achava que a adolescente em mim duraria para sempre, tal qual metal precioso. E tentei mumificar esse ser que um dia eu fui por um tempo, confesso com certo embaraço. Até que, num dado momento, foi preciso fazer uma despedida e assumir que a adulta agora me possuía mais do que nunca. Não foi de propósito; a aurora da minha vida passou e foi embora sem se despedir. Com o final dessa primavera começou a vida de adulto, sem pedir permissão.
É assim que se dá o crescimento; a gente se adapta finalmente a uma situação e ela acaba. E as rugas mapeiam esse anúncio sem dó nem piedade. O tempo se impõe, simplesmente.
Fácil verbalizar isso após os trinta, com quilômetros rodados. Mas há uma tristeza nesse discurso, um luto, uma dor e uma perda. Pois bem, para um adolescente, a mesma sensação se presentifica. O momento é outro, mas é também marcado por uma transformação. Contudo, falta repertório, palavras, sobram angústias e sensações. 
A adolescência é a passagem do mundo infantil para o adulto, uma ponte, uma travessia. Tudo isso envolve uma adaptação, e toda adaptação é precedida por uma crise. Aquele corpo de criança se vê invadido por pelos, espinhas, partes que crescem desgovernadamente, uma voz que desafina, hormônios que não existiam. Esses novos habitantes daquele espaço tão gracioso do corpo infantil não chegam de forma harmônica.
Esse processo é marcado por uma sensação de estranhamento, de não pertencimento. Já diziam os Titãs: Eu não caibo mais na roupa que eu cabia, eu não encho mais a casa de alegria, mas quando me olhei achei tão estranho, a minha barba estava desse tamanho.”
Há ao mesmo tempo uma excitação com a conquista de mais autonomia e também tristeza pelas cobranças do mundo da maturidade. Além da dor da perda do lugar privilegiado da criança. 
Os pais, que antes eram um lugar de proteção, tornam-se figuras persecutórias por tentarem colocar limites nas realizações de desejos do jovem. O que traz a estrofe de outra canção: Você culpa seus pais por tudo, isso é absurdo. São crianças como você, o que você vai ser quando você crescer “.
Nesse período da vida há um luto das figuras parentais idealizadas. Logo, o lugar de herói fica desocupado e por isso, há uma busca por ídolos e novos modelos de identificação. O jovem está desesperado em busca de formar essa nova identidade.
David Leviski (1998) destaca que embora fisicamente o adolescente esteja apto a exercer suas funções, ainda encontra-se  diante de forças da cultura  e da sociedade e do risco  que existem ante  os desejos de plena liberação e  desenvolvimento dessas funções.
Calligaris,C. (2000) adiciona que apesar da maturação dos corpos a autonomia reverenciada, idealizada por todos como valor supremo, é reprimida, deixada para mais tarde.
É como se tornassem estrangeiros num mundo que sempre lhe foi familiar. Por isso as amizades nessa fase são tão importantes, constroem um muro para proteger aquele Ego frágil em transformação. 
Costumo dizer que são como Ferraris com motor de Brasília amarela. Lataria linda, mas o interior precisa de cuidados. O corpo de adulto e a mente infantil são parte de um mesmo indivíduo. E essa mente não é capaz de conter aquele novo corpo em desenvolvimento, numa ardência pulsional. Na crise da adolescência, há uma sexualidade aflorando descontroladamente e torna-se difícil lidar com seus impulsos. 
De acordo com o psicanalista Marcelo Viñar (2005) a juventude não pode ser definida como realidade cronológica, e sim como um tempo de mutação que marca um antes e um depois. Isso pois a essência da adolescência é o ímpeto, o movimento. Como se captura o vento ou o fogo quando sua marca é a instabilidade?
Atendo adolescentes há alguns anos no consultório e me sinto bastante privilegiada por receber esses pacientes no momento em que a dança da vida se apresenta para eles. Recebo-os como quem recebe botões de rosa fechados, cheios de esperança, ao mesmo tempo frágeis e cheio de espinhos. E procuro dar-lhes algum contorno. Não é um trabalho fácil, ajudá-los nessa transição. Explicar-lhes que a vida é mesmo contraditória. Que os amores acabam. Falar-lhes sobre leis num país onde elas são constantemente desrespeitadas. Explicar-lhes sobre autoimagem numa cultura de Photoshop. Ajudá-los a compreender que esse corpo que pulsa não pode fazer exatamente aquilo que deseja a despeito de sua intensidade.
Contudo, acredito que um jovem, quando acolhido e compreendido nesse transbordamento emocional, nos sinaliza um futuro mais colorido e cheio de esperança.
Trabalhar com esses pacientes que vêm com a marca da pressa, da urgência , do efêmero do nosso tempo atual pode ser rejuvenescedor. Convidá-los a um momento de pausa e reflexão é quase um ato revolucionário. Pois perceber também o quanto essa geração chegando se alimenta de relações qualitativas, basta haver uma intenção, me faz acreditar num horizonte mais azul. Sim, eles assistem lixo na internet, mas também são capazes de se encantar com um belo poema, um bom filme, quando convidados. Basta estender-lhes a mão nessa passagem.
Devemos ser cuidadosos, como adultos, para continuarmos investindo nos adolescentes, não com um olhar invejoso do jovem que deixamos de ser. É importante dar credibilidade aos sentimentos dos jovens, tentar compreender suas dores e angústias. Oferecer um amparo nesse momento de tempestade. Essa é a aposta esperançosa.
O aumento dos suicídios na adolescência nos denuncia um vazio. Que vazio é esse? Seria o vazio do nosso olhar? Como adultos? Será que estamos preocupados com o legado que estamos deixando para os jovens, em acolher esses seres em transformação?
Ou será que estamos tão preocupados em perpetuar nossa juventude que nos esquecemos de cuidar de nossos jovens? Será que, ao nos conformarmos com nosso lugar de envelhecimento, não podemos lhes oferecer a proteção que necessitam? 
Pensa na força dessa corrente.

Helena Cunha Di Ciero Mourão  percebeu, no fim da escrita, que fez uma escolha quase sem querer de canções para ilustrar o texto. Renato Russo e Titãs não vieram aleatoriamente, vieram lembrar minha adolescência.




 Calligaris, C. A Adolescência. São Paulo: Publifolha, 2000
Levisky, David Léo Adolescência : reflexões psicanalíticas / David Léo Levisky. - 4. ed. - São Paulo : Zagodoni, 2013.
Vinar . M  (2005)La Juventud en el Mundo de Hoy. Ser Sujeto Adolescente en el tercer milenio. Abril 2005. Soc. Brasilera de Psicología de Sao Paulo