TUDO RAIA
“Sei que canto. E a canção é tudo.
Tem sangue eterno a asa ritmada.
E um dia sei que estarei mudo:
– mais nada.”
Tem sangue eterno a asa ritmada.
E um dia sei que estarei mudo:
– mais nada.”
Cecília Meirelles
*Helena Cunha Di Ciero
As notícias são assustadoras e a iminência de que algo terrível está para acontecer nos assombra. Dizem que o pico está para chegar, vejo as curvas da pandemia em ascensão e me lembro da Noviça Rebelde subindo a montanha com seus sete enteados fugindo do nazismo. Ela que me acolheu em tantas tardes na infância. Acolhe, hoje, meu terror, quando olho a curva de infectados subindo e penso em Climbing the Mountain tocando de fundo, um horizonte azul se anunciando e a promessa de liberdade. Assim terminava o filme que eu adorava em pequena. Será que isso vem depois do pico da montanha? Do pico da doença? Haverá um horizonte azul?
Não sei, o gráfico sobe e enquanto ele sobe, meu coração pulsa. The Hills are alive with the sound of music, canta a Noviça na primeira cena do filme. As montanhas estão vivas: e eu também. Então, sigo em frente.
Confesso, porém, que abro os olhos já há algumas semanas e repetidamente sopra a canção em pensamento: “Dorme minha pequena, não vale a pena despertar”, cujo título, (enquanto escrevo me dou conta) é: “Acalanto para Helena”. Meu nome. Eis minha canção de acordar, meu autoacalanto. Então eu canto. Afinal eu canto porque o instante existe, assim dizia Cecília Meirelles. Inevitavelmente, desperto, o dia raiou. Nesse instante estou a salvo.
Independente do coronavírus, da Covid-19, doença causada pelo Sars-Cov-2. (palavras que vim conhecer há menos de dois meses, mas que hoje fazem parte do meu vocabulário com mais constância do que nunca) o dia teimoso insiste em raiar. Meus olhos se abriram, mesmo com medo.
As manhãs nos fazem entender o raiar do sol como uma promessa de esperança. A doença teima em existir, assim como o sol. Marina Lima diria: “Se tudo cair, que tudo caia, pois, tudo raia”. Em “Sobre a Transitoriedade”, Freud nos traz a ideia dos ciclos da vida como sendo parte de sua beleza. Estamos num ciclo de pandemia, mas assim como passou o nazismo, as guerras, a ditadura, a peste negra, isto também vai passar.
Há algum tempo, conheci o artista japonês On Kawara cujo trabalho consistia em mandar, durante muitos anos, telegramas para os amigos e colecionadores com a frase: I am still alive. Vi essa exposição alguns anos atrás e a força dessa frase me tocou profundamente. I am still alive.
EU AINDA ESTOU VIVO.
Still.
Ainda.
Ainda pode parecer pouco, mas é um lugar seguro nesse instante. Ainda, hoje, é território sagrado.
Caetano também cantou, enquanto exilado: I’m alive and vivo muito vivo, vivo, vivo Feel the sound of music banging in my belly know that one day I must die I’m alive.
E em interpretação dos sonhos Freud coloca que a fantasia é o que nos faz tolerar a realidade e que o sonho existe para que o indivíduo consiga suportá-la. Seguirei cantando enquanto tiver voz. Seguirei procurando pelo sonho. Colocando melodia em gráfico de morte. Seguirei procurando pela pulsão de vida. Ainda que a morte bata na porta da minha casa.
Hoje não, Sr. Corona. Hoje, estou ocupada, hoje não posso te atender.
*Helena Cunha Di Ciero é psicanalista, membro Associado da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo (SBPSP), especialista em Psicologia Psicanalítica pela Universidade de São Paulo (USP).
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