numa terceira margem do Rio
(texto publicado na revista Amarello #17)
Sentimos o poder da palavra fé logo ao dizê-la: nossa boca se abre como
um túnel entre o universo e nosso corpo , formando ali um espaço íntimo e
sagrado . Tão forte quanto um poema, essa palavra de apenas duas letras se
basta – e, por outro lado, nos basta e nos acolhe em momentos difíceis , de dor
, dúvida e desespero. Trata–se de uma ferramenta interna que utilizamos em busca
de esperança e sendo assim, ambas caminham de mãos dadas : fé e esperança. São estes os alicerces de um outro estado
fundamental para nosso desenvolvimento, a confiança
. No dicionário, fé, confiança e
credibilidade são sinônimos.
O psicanalista Bion define a fé como uma resposta primordial e profunda de defesa contra o sentimento de
catástrofe. É uma experiência emocional, singular. Porém não se trata de uma fé religiosa – um
conjunto de dogmas e doutrinas que constituem um culto. Para o autor , esta fé
se torna apreensível quando se representa no pensamento e por meio deste. Se
trata da fé na existência de uma realidade verdadeira e última. A fé que move um cientista a ir em busca de
algo, mesmo sem dados objetivos .
A beleza da fé é que, não precisa de provas, nem de sustentar se em
nada racional para existir . Proveniente do grego fides, fidelidade : a fé É - e pronto . O sentido de fé que coloco aqui é
uma convicção íntima, um lugar aonde não resta
dúvida, no qual confio imensamente e
onde deposito meu desamparo. E de lá tiro uma outra palavra fundamental
para ir adiante : Coragem.
É um caminho alternativo que buscamos quando somos frustrados pela
realidade . Nesse sentido, ela nos dá uma noção de resistência
e também de existência – pois é uma forma de confrontar o presente.
Explico: Meus exames dizem que estou doente, meu médico também , mas
minha Fé é maior - É uma fala comum entre pacientes nos hospitais, que mostra uma tentativa de encorajamento
frente ao medo provocado por estar de frente á algo insuportável, como uma
doença grave. Eu existo á despeito do que está sendo dito, assim eu enfrento.
Podemos dizer então que é uma forma de desafiar o real e que á partir
deste sentimento, construímos uma nova realidade. E tampouco são raros os
momentos nos quais a fé altera o estado de saúde de alguém. Não falo em
milagres, pouco entendo disso. Mas falo dos fenômenos nos quais as pessoas
apoiadas na Fé modificam um estado que parecia irreversível .
Sou de origem católica, mas nem um pouco praticante. Mas sempre me
comoveu a oração do Credo , que começa com a palavra ‘creio’. O ato de crer em algo, seja lá o que for, nos
tira de um lugar comum e nos transporta para o futuro esperando que algo ali
seja mais belo que o hoje. E, nesse ponto, crer ajuda a movimentar-nos . Crer no sentido de
confiar. Confiar que além do horizonte
exista um outro lugar é confiar que o movimento trará evolução, que há algo
melhor adiante. Nesse lugar da alma que buscamos uma transformação , uma forma
de sonhar e buscar .
A fé não costuma falhar, já dizia Gilberto Gil, é aliada de nosso trajeto.
É ela que move montanhas, que nos ajuda
na difícil caminhada da vida. Na peça Alma Imoral, o texto de Nilton Bonder
conta que o que fez com que o Mar se
abrisse foi Deus, comovido com a força do caminhar dos Judeus que fugiam do
Egito. Deus comovido com a fé de seus fiéis que marchavam , abre o
mar . A fé move e comove.
Nos momentos questionamento e medo
, testamos nossos recursos contando com algo interno, se a realidade responde bem, acredito que
minha fé em mim e na força de meu passo, foi capaz de uma possível metamorfose daquilo
que estava se passando anteriormente.
Uma questão que fica para mim como mãe e psicanalista é como as crianças
de hoje tão viciadas em tecnologia constroem em si um espaço para que esse
sentimento adentre e as penetre de forma verdadeira . Se antigamente ,
entravamos em contato com eles quando a
realidade nos testava, hoje com a realidade virtual , cada vez mais
tomando posse , onde será que a nova geração busca a coragem? Passando de fase
nos games? Confiando na força dos dedos
ao apertar um botão em lugar de confiar na força do passo? E se a realidade é
cada vez mais virtual, como é que me diferencio dela á ponto de resgatar em mim
um sentimento que possibilite seu enfrentamento ? Seria esse lugar da fé
somente interno ou externo? Ou seria algo entre esses dois lugares? Entre o céu
e a terra? Uma terceira margem do rio talvez. Eu tenho fé que a realidade
impera e ensina á partir da experiência , sempre.
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