sexta-feira, 31 de outubro de 2014


Mrs Dalloway ou a Menina dos Cravos.

Quinta é meu dia favorito. Aqui nos Jardins o trânsito para . As ruas do meu bairro ficam entupidas de carros . E no meio da babilônia a gente enxerga pequenas tendas listradas, coloridas responsáveis pela lentidão do tráfego : É ela, a feira.
Eu sempre acordo mais contente nesse dia, parece que a região onde moro renasce , muda de cor. As lojas chiques do baixo Oscar Freire cedem espaço para a forma de mercado mais antiga que existe : a feira livre. Ao lado dela há dois supermercados, mas sua valentia dá de ombros e ela se mantém  firme e forte. O que me chama atenção é que seu formato permanece intacto, há anos. Apesar de toda a modernidade , os alimentos seguem ali dispostos em bacias plásticas,  caixotes , as frutas todas encaixadas em degraus coloridos – na feira o tempo passa em outra velocidade . Lá a rede social não faz sentido, whatsapp é desnecessário, e mail não possui qualquer serventia .
Barulhenta, cheia de vida, com diferentes pessoas convivendo, conversando . A vitalidade da feira me encanta, todo mundo cabe ali . Um ótimo antídoto anti-solidão,   não passamos por ela com a sensação de sermos invisíveis, como muitas vezes nos sentimos nas ruas de São Paulo . Ninguém  ali tem muita pressa : É preciso pegar as frutas nas mãos, sentir sua textura , ver a cor dos legumes. Isso exige acima de tudo disponibilidade e tempo .
 Entre as barracas listradas , te olham nos olhos, disputam sua atenção, te paqueram , te dão pedacinhos de fruta . Somos o tempo todo convocados . Gosto de passear por seus corredores , ver as frutas brilhando, os temperos, os peixes, o frango, água de coco , pastel e finalmente : As flores .
A barraca dos  seu Jaime  e da Dona Ilma tem uma história bem antiga na minha vida. Toda semana meu pai comprava flores para a nossa casa. Lírios para minha mãe, cravos para mim. De mocinha adorava chegar da escola em casa e ver aquele vaso enorme na sala, lírios brancos , imponentes. Minha mãe sempre escolhia um vaso que combinasse com a decoração ,  eles sempre acabavam brigando pois ele também queria escolher o vaso, palpiteiro que era. E No meu quarto havia sempre um vaso pequeno, com uma dúzia de cravos bem delicados. Na quinta feira,  eu tinha certeza que eu e nós duas éramos muito amadas . Prova disso era o perfume que invadia nossa casa nesse dia e durava por uma semana toda.
Logo que me casei , comecei a fazer feira. Me sentia assim , dona de minha casa , de minha família , adulta , quando descia a rua para fazer as compras semanais . A primeira coisa que fiz, ao mudar,  foi comprar flores para minha sala.  Cheguei na feira dizendo ao Seu Jaime  que era filha de  um antigo cliente. Para minha surpresa ele não se lembrou dele. Fiquei sem graça, saí sem desconto - mas comprei logo uma Hortência. Linda, redonda, só minha . Quando relatei ao meu pai o que havia ocorrido ele me disse: Da próxima vez, fale que é você a menina dos Cravos. E assim foi. Nunca mais saí sem desconto. Nem sem uma rosa de brinde .
Depois comecei a comprar cerejeiras ( que embora lindas ,sujam a casa ), astromélias ( que são mais baratas e rendem lindos arranjos), cravínias ( que são flores pequeninas mas que juntas parecem uma revoada de pequenos passarinhos) , girassol ( que me lembra minha melhor amiga) , violetas (que sempre renascem , uma surpresa!) rosas e tantas outras lindas flores para enfeitar minha casa. Descobrindo-as era um jeito de descobrir algo muito feminino meu  , meu lado dona de casa .
Subo minha rua com meu buquê de flores como  uma criança que acaba de conhecer uma melhor amiga e logo sai de mãos dadas. Chego em casa sonhando com o vaso no qual elas vão morar e escolho um lugar para que elas recebam sol e possam ser reverenciadas por quem entra. Sempre que alguém chega em casa encontra um vaso florido. E mesmo se seu estiver muito triste, nunca me esqueço de comprá-las .
Uma das últimas refeições que fiz em família foi na feira. Comemos eu ele e minha mãe o mesmo pastel, nos encontramos por coincidência . Na frente da barraca do Seu Jaime , uma semana antes de ele entrar em coma . Toda vez que eu passo por lá eu agradeço por ter vivido essa memória nesse cenário . Se tenho vontade de comer um pastel as dez da manhã , eu cedo. Mas Lírios e Cravos eu nunca mais comprei .





Helena Cunha Di Ciero é psicanalista , membro filiado da Sociedade Brasileira de Psicanálise , mãe do Cisco  e a menina dos cravos

quinta-feira, 2 de outubro de 2014

Um nome, um lugar

Psicanálise é experiência emocional vivida.  E como tal não pode ser transcrita , gravada , explicada , compreendida ou contada em palavras . É o que é . Assim define T. Ogden  em  Essa arte de Psicanálise  - Talvez seja importante adicionar que é também  uma experiência  bastante singular  e pessoal ,  que se inaugura no ofício  e  no tempo de cada um de nós. O que nos coloca um questionamento : Existe um nome que abarque  suficientemente o fazer do analista?
 Isto é, seria possível ser de fato analista enquanto uma instância , algo fechado  , um nome simplesmente ?  E será  que é de fato importante  que alguém nomeie nosso fazer , além de nossos pacientes ? Ao mesmo tempo em que  se só nosso paciente nos nomeia analista , algo também se complica , uma vez que é preciso que  respondamos em voz alta pelo nome que somos chamados. Devemos ser donos desse e  assim apropriados  de nosso fazer.  E para isso é necessário ter uma identidade bem definida enquanto analista e  a Instituição torna-se palco desse ser em desenvolvimento. Talvez  então  o fundamental seria que esse nome esteja lá  primeiramente, gravado , de cor , no sentido usado pelos gregos antigamente. Um nome que esteja gravado na corda do coração.
O analista deve sair  per via de levare  de dentro de nós , como o escultor que tira do mármore a escultura que estava ali aprisionada . Mas o psicanalista sempre  esteve lá e vai se apossando de nosso estado bruto aos poucos, ás custas de estudo, análise , troca , supervisão  e finalmente :  As custas de  horas trabalho.
Não há uma inauguração de um sujeito analista, uma vez que uma certa inquietude, um desassussego, uma empatia frente ao sofrimento do outro sempre esteve lá. Do contrário não seria esse o caminho escolhido.   É preciso que sempre tenha estado, para vir a ser o local de pouso da história daquele que vem ao nosso encontro em busca do sentimento que conduz a vida: A esperança.
Odilon de Mello Franco acrescenta que trazemos em nosso interior o analista que podemos vir á ser , se tivermos essas funções minimamente estruturada em nós .  O campo Institucional e a análise didática são responsáveis pelo  aninhamento do analista em formação, pela troca de idéias . Manuel Lauriano Salgado de Castro em seu artigo “Tornar-se psicanalista   define que ‘Ser um  objeto significativo em análise  que realmente atenda as necessidades profundas do paciente  é uma função que depende totalmente  do desenvolvimento e da conquista da função psicanalítica  pelo analista.  (pg 201).
A Psicanálise não é um nome, é um estado. Uma maneira singular de estar no mundo e de trocar com ele  , percebendo o grande potencial transformador  do humano, nosso material de trabalho.  Ainda segundo Ogden , o paciente precisa de alguém familiarizado com a noite,  com a dor , alguém que se comova com a escuridão sem teme-la ou paralisar-se frente a  ela. Talvez antes de nos perguntarmos se somos ou não analistas, seja mais importante observar se somos ou não  familiarizados com a noite. E se somos capazes de nos reinventar para cada paciente  , para ser o  analista  que o paciente necessita  : o analista precisa aprender sob nova ótica , como ser o analista de cada paciente em cada sessão ( p.177).
Torna –se também importante avaliarmos o quanto somos capazes de nos afetarmos com a experiência analítica, a ponto de sonhar e aprender com ela.  E o quanto somos gratos  no conceito Kleiniano de gratidão , isso é o quanto fazemos uso daquilo que o mundo interno do paciente nos desafiou enquanto agente transformador . 
            São muitas as histórias que entram em nosso consultório e é preciso  muito cuidado , pois o que um paciente nos traz é algo de muito valioso. Podemos pensar que além da parte técnica envolvida uma outra palavra precisa entrar em jogo, respeito. Sentimento é coisa séria e para trabalhar com eles é necessário muita munição, estudo , supervisão .
Também é  necessário olhar com os olhos da alma o paciente que nos procura  e abriga-lo internamente , afim de compreendê-lo. E  esse lugar  aonde o paciente nos habita não tem um nome definido.  E precisa ? E um nome dá conta disso tudo ?

            

numa terceira margem do Rio

(texto publicado na revista Amarello #17)


Sentimos o poder da palavra fé logo ao dizê-la: nossa boca se abre como um túnel entre o universo e nosso corpo , formando ali um espaço íntimo e sagrado . Tão forte quanto um poema, essa palavra de apenas duas letras se basta – e, por outro lado, nos basta e nos acolhe em momentos difíceis , de dor , dúvida e desespero. Trata–se de uma ferramenta interna que utilizamos em busca de esperança e sendo assim, ambas caminham de mãos dadas : fé e esperança. São estes os alicerces de um outro estado fundamental para nosso desenvolvimento, a confiança .  No dicionário, fé, confiança e credibilidade são sinônimos.
O  psicanalista  Bion  define a fé como uma resposta primordial  e profunda de defesa contra o sentimento de catástrofe. É uma experiência emocional, singular.  Porém não se trata de uma fé religiosa – um conjunto de dogmas e doutrinas que constituem um culto. Para o autor , esta fé se torna apreensível quando se representa no pensamento e por meio deste. Se trata da fé na existência de uma realidade verdadeira e última.  A fé que move um cientista a ir em busca de algo, mesmo sem dados objetivos .
A beleza da fé é que, não precisa de provas, nem de sustentar se em nada racional para existir . Proveniente do grego fides, fidelidade : a fé É - e pronto . O sentido de fé que coloco aqui é uma convicção íntima, um lugar aonde não resta  dúvida, no qual confio imensamente e  onde deposito meu desamparo.  E de lá tiro uma outra palavra fundamental para ir adiante : Coragem.
É um caminho alternativo que buscamos quando somos frustrados pela realidade . Nesse sentido, ela nos dá uma noção de  resistência  e também de existência – pois é uma forma de confrontar o presente.  Explico: Meus exames dizem que estou doente, meu médico também , mas minha Fé é maior - É uma fala comum entre pacientes nos hospitais,  que mostra uma tentativa de encorajamento frente ao medo provocado por estar de frente á algo insuportável, como uma doença grave. Eu existo á despeito do que está sendo dito, assim eu enfrento.
Podemos dizer então que é uma forma de desafiar o real e que á partir deste sentimento, construímos uma nova realidade. E tampouco são raros os momentos nos quais a fé altera o estado de saúde de alguém. Não falo em milagres, pouco entendo disso. Mas falo dos fenômenos nos quais as pessoas apoiadas na Fé modificam um estado que parecia irreversível .
Sou de origem católica, mas nem um pouco praticante. Mas sempre me comoveu a oração do Credo , que começa com a palavra ‘creio’.  O ato de crer em algo, seja lá o que for, nos tira de um lugar comum e nos transporta para o futuro esperando que algo ali seja mais belo que o hoje. E, nesse ponto, crer  ajuda a movimentar-nos . Crer no sentido de confiar. Confiar que além do horizonte exista um outro lugar é confiar que o movimento trará evolução, que há algo melhor adiante. Nesse lugar da alma que buscamos uma transformação , uma forma de sonhar e  buscar .
A fé não costuma falhar, já dizia Gilberto Gil, é aliada de nosso trajeto. É  ela que move montanhas, que nos ajuda na difícil caminhada da vida. Na peça Alma Imoral, o texto de Nilton Bonder conta que o que fez com que o Mar  se abrisse foi Deus, comovido com a força do caminhar dos Judeus que fugiam do Egito.  Deus comovido  com a fé de seus fiéis que marchavam , abre o mar . A fé move  e comove.
Nos momentos  questionamento e medo , testamos nossos  recursos   contando com algo interno,  se a realidade responde bem, acredito que minha fé em mim e na força de meu passo,  foi capaz de uma possível metamorfose daquilo que estava se passando anteriormente.
Uma questão que fica para mim como mãe e psicanalista é como as crianças de hoje tão viciadas em tecnologia constroem em si um espaço para que esse sentimento adentre e as penetre de forma verdadeira . Se antigamente , entravamos em contato  com eles quando a realidade nos testava,  hoje  com a realidade virtual , cada vez mais tomando posse , onde será que a nova geração busca a coragem? Passando de fase nos games? Confiando  na força dos dedos ao apertar um botão em lugar de confiar na força do passo? E se a realidade é cada vez mais virtual, como é que me diferencio dela á ponto de resgatar em mim um sentimento que possibilite seu enfrentamento ? Seria esse lugar da fé somente interno ou externo? Ou seria algo entre esses dois lugares? Entre o céu e a terra? Uma terceira margem do rio talvez. Eu tenho fé que a realidade impera  e ensina  á partir da experiência ,  sempre.