quarta-feira, 18 de dezembro de 2019

TEXTO PUBLICADO NA REVISTA AMARELLO #30 ILUSÃO

CRIPTONITA

Me certifiquei que comeram legumes. Orgânicos. Para evitar agrotóxicos. Que perigo. Passei filtro neles, antes da praia. O buraco da camada de ozônio só cresce, li no jornal. Protetor é para evitar câncer, achei uma camiseta que tem FPS 50, comprei logo duas. Coloquei rede na janela. Para evitar que caiam lá embaixo. Tears in heaven foi a canção que Eric Clapton compôs para o filho que caiu da janela. Embalou minha adolescência. Enquanto eu dançava bailinho e começava a minha juventude essa era a trilha sonora das festas . Ingenuidade minha, nem percebia do que se tratava . Estava tão distraída com a vida que me convidava para dançar , deslumbrada , que quase me esquecia que também existe esse negócio chamado morte.
A empresa que contratei para a rede chamava alguma coisa Angel. Tem que ter. Eu que não fico sem esse anjo da guarda comigo chamado rede de proteção. Me dá arrepio ouvir essa música no rádio depois que eu pari. De vez em quando ela aparece. Sempre me emociona. Como esse homem conseguiu, meu Deus, cantar outra vez? É possível voltar a ter voz com um impacto desse na vida? Não sei. Não quero saber. Sempre tento mudar de estação . Mas a música é forte demais , permanece . É que a melodia da morte nunca deixa de estar à espreita . Como uma música que fica sempre de fundo .
Sei que cobri-os a noite para evitar pneumonia. Fechei a janela por causa da ventania. Saí correndo no meio da madrugada para acolher um filho que teve pesadelo. Levantei com tanta rapidez que travei o pescoço. Está tudo bem. Era só um sonho ruim. Voltemos a nos distrair com o cronograma do dia seguinte. Voltamos a programação normal da vida.
Dei também a vacina de sarampo, a terceira dose, já que há uma epidemia voltando, minha sogra falou. Própolis garante uma melhora da imunidade, assim eu li numa notícia do mercado de comidas naturais da esquina e minha amiga confirmou. Lá mesmo onde compro macarrão integral para evitar a farinha branca, que pelo que dizem é um veneno. Não custa tentar. Eu estava tão atrapalhada essa semana que nem fiz a inalação direito na minha filha mais nova, conforme o pediatra orientou para que o tempo seco não lhe cause alergias respiratórias
Quando teve a epidemia de ZIka comprei mais de 10 repelentes de uma só vez. Paguei o maior mico na farmácia com uma cestinha que tinha 10 exposis, que era o único eficaz para dengue, tal qual li numa matéria da revista.
Fui também a primeira da fila da vacina de gripe no Cedip para evitar um surto de H1n1 que acabou de ocorrer. Eram 7.50. Estava eu, minha mãe de 80 anos, as crianças e meu marido. Por que a pressa em plena segunda? Me perguntava meu marido. Eu não respondi na hora pois estava preocupada em onde eu tinha guardado o papel do manobrista, como sempre, mas a verdade é que eu tenho pressa em fugir da morte, por isso corro.
Eu tomo banho depois dos velórios, tiro sapato. Quero tapeá-la. Quero ela longe da minha casa. Quero combatê-la embora eu saiba que eu estou fadada a perder essa luta no fim do meu jogo. Eu tenho certeza que ela é esperta, entra no buraco da fechadura, pela janela, pela fresta da porta .
Na semana passada outro susto: Chegamos a tempo no pronto socorro no meio de uma crise de Laringite do meu mais velho. Eu achei que ele ia parar de respirar. Ufa. Deram remédio, voltamos para casa. Dormi calma. O fantasma daquele dia tinha dormido. Dormi, triunfante: Enganei você, velha senhora. Não foi dessa vez que a morte nos encontrou. Consegui me esconder direitinho .
Dessa vez a ambulância dobrou a esquina. Fiz um sinal da cruz quando ela passou. Que cheguem a tempo na casa do doente, pensei solidária. Ao mesmo tempo em que comemorei, egoista, que dessa vez não foi comigo. Entrei no supermercado, atendi o celular. Não é comigo dessa vez. Posso comprar carne para o almoço com calma. Para ela não tem vaga na porta de casa. Hoje não .
Eu não vou conseguir proteger vocês para sempre, meus filhos. Mas eu queria. Então enquanto eu posso faço esses paranauê, que no fundo não adiantam tanto, estão além do meu controle, mas me dão a ilusão de que nada de mal vai chegar perto de vocês. Eu queria ter a certeza que ninguém vai quebrar o coração de vocês. Que vocês nunca vão ver no canto de uma festa o amor de vocês gargalhando e jogando a cabeça para trás com outro alguém. Queria também que vocês nunca fossem traídos, maltratados, excluídos. Que nunca sofressem um assalto. Um assédio.
Que nunca recebessem a notícia de que alguém que vocês amam está morrendo.
Enquanto eu puder eu vou lutar para enganar essa nossa inimiga. Vou viver para tentar tapear a velha senhora. Tamparei os ouvidos para não ouvir sua voz, tal qual Ulisses fez com suas sereias. E nessa tentativa ilusória de drible, vou me movimentando. Construo muros, mudo de casa, trabalho, produzo, transito, sem me paralisar. Amo vocês com mais força: Fecho as janelas. Faço inalação. Blindo o carro se preciso for. Tenho pressa, tenho urgência. Ser a mãe de vocês me criou a maior de todas ilusões: a de que eu posso tentar ser super heroína. Foram vocês que me ofereceram essa coragem. São vocês meu amuleto . E eu sei que dentro vocês, viverei para sempre. Serei imortal, finalmente, nessas memórias que construí .
Essa luta é o meu único caminho possível .Ainda que eu saiba que a maratona termina de frente com essa tal bandida. E que ela vai roubar minha tão suada medalha.

Por isso, corro demais.


Helena Cunha Di Ciero Mourão é Psicanalista. Membro filiado da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo. Especialista em Psicoterapia Psicanalítica pela Universdade de São Paulo
Tenta cuidar de desilusões , ressignificar  ilusões , todo dia no consultório.
E no resto do dia tenta ser a Heroína de duas crianças .
hcdiciero@gmail.com
Agora eu era o herói e meu cavalo só falava inglês


Quer me ver nervosa como mãe e psicanalista que sou - que por sinal são as duas coisas que eu mais gosto de ser nessa vida - é quando vejo criança trocando celular por brincadeira. Vídeo no youtube por esconde-esconde, videogame por pega-pega, boneca por gato Tom. Quase morro de desgosto quando vejo um grupo de crianças juntas, cada um no seu tablet, isolados e sem trocarem entre si, acomodados numa almofada de sofá, num silencio de desvitalização que mais me assombra do que aquieta. E me sinto profundamente culpada quando me percebo confortável numa cena dessas.
Olho ao redor, “Todos estão surdos?”  como diria Roberto Carlos, ninguém se entristece com crianças abduzidas por uma tela de celular? Talvez eu esteja exagerando, mas sinto uma revolta brutal quando percebo que há um absoluto silêncio na sala onde deveria ter ruídos curiosos de vidas pulsantes que acabaram de começar. Como se nessas horas estivesse testemunhando um funeral precoce do pedaço mais colorido da vida: A imaginação.
Eu que sou calma, saio do sério mesmo. Tiro o celular-alucinógeno, aguento birra e gritaria com xingamentos de “sua chata” e como num passe de mágica: Bibibidibobidibom, vejo minha sala virar faroeste, crianças batendo portas, correria, bagunça. Ufa!  Eles estão vivos! 
Claro que não dá para abrir mão da tecnologia, é um contexto no qual estamos inseridos, mas eu tenho a impressão que cada vez mais ela é usada como sossega-leão para as crianças.  Tipo uma chupeta eletrônica. Tornando secundário a criatividade, algo extremamente vital cujo potencial é transformador.
No meu álbum de retrato interno da minha vida infantil estão presentes os lugares em que estive, algumas viagens, a pitangueira da casa da minha avó, a piscina azul, minha escola maternal, minha amiga Ju, mas principalmente: As brincadeiras. 
Cansei de fazer festa de casamento para Barbie, decorar a casa do Ken com propagandas de miniatura de revista da Editora Abril, que seriam usadas como objeto de decoração na a sapateira da minha mãe - que virava um loft chique e charmoso. Enquanto isso, minha Barbie dava lindas festas na piscina azul que fazia bomba de espuma. Eu mesma @adulta @real @oficial nunca fui em nenhuma pool-partymas a minha Barbie era a rainha desse evento, que ocorria todo sábado na minha varanda e durava horas.  
Pronto, em dois minutos de texto, meu coração ficou cheio de lembranças num domingo triste de chuva e me vi sorrindo comigo mesma enquanto revivia um pedaço da minha história navegando pelas minhas memórias. Para isso serve a imaginação, traz um conforto para a gente mesmo, uma sensação de aconchego e acolhimento.
 O que me leva a seguinte reflexão: Do que será que serão feitas as memórias dessa criançada que vive embebida no mundo virtual? Será que suas saudades serão feitas de pixel?
Não sei. Sei que lá de onde eu venho brincadeira é coisa séria. Para nós, psicanalistas, o brincar nada mais é do que o trabalho da criança. Isto é, brincando ela elabora situações importantes, conflitos emocionais, questões, faz pesquisas sobre seu corpo, aprende a comemorar a vitória de um jogo assim como a resignação necessária para lidar com as perdas. (Pedaço que é difícil até para os adultos, imagine com as crianças).
De acordo com Winnicott, em seu texto: O Brincar e a Realidadeé através da apercepção criativa, mais do que em qualquer outra coisa, que indivíduo sente que a vida é digna de ser vivida. Portanto, é a partir da brincadeira que a criança se adapta a realidade. É como se o brincar fosse uma forma da criança cuidar de si, de se tratar.
Certa vez uma paciente contou-me que quando mudou de país encontrou no lixo uma casa de Barbie, com a qual brincava para dar conta da saudade que sentia da casa de onde vinha. Claro que isso não era feito de forma intencional, mas de alguma forma ela escolheu inconscientemente um objeto para dar conta de uma angústia.
Freud observando seu sobrinho jogando um carretel percebeu que nessa brincadeira havia uma comunicação inconsciente, o carretel ia voltava assim como a mãe que saia e voltava. E nessa brincadeira havia, portanto, uma elaboração de uma ausência.  Melanie Klein foi quem começou a entender que era possível fazer um trabalho psicanalítico com as crianças entendendo o brincar como uma comunicação de questões inconscientes. E começou a trabalhar “ouvindo” as brincadeiras dos pacientes á partir da escuta psicanalítica. 

 A noiva do caubói era você além das outras três

A brincadeira é território da fantasia e por isso deve ter a marca da liberdade para que sentimentos possam ser expressos em sua totalidade. Isto é: Tanto os bons, quanto ruins. Sua finalidade é dar conta de nosso desamparo. Por isso o nome: BRINCADEIRA. Ponto. 
Com isso, gostaria de colocar um ponto que considero crucial: O brincar precisa ser livre. Trata-se do lugar do sonho, onde tudo pode acontecer. É possível ser casado com três, ser bedel e também juiz. Não é preciso haver uma coerência, um sentido, este é dado pela própria criança, que é quem governa e faz a constituição do território do brincar:  E Pela minha lei, a gente era obrigado a ser feliz
Não se censura a brincadeira. Nós adultos, vemos uma criança brincando com uma arma de plástico e nos assustamos: Estaríamos incitando a violência? Perguntaria uma tia no almoço de natal.  Pelo contrário, para a criança a arminha pode ter outra representação, assim como a espada. Pode ser algo do masculino e não do ódio. Não adianta olhar para as crianças com nossos olhos de projeção. Muitas vezes a agressividade está em nós, que os enxergamos como nossa extensão.  
Isso significa que precisamos estar atentos pois reprimindo um afeto, podemos estar prejudicando uma criança. Compreendemos a mulher adulta que a pode ficar com raiva do ex e picar as fotos, mas as coitadas das crianças que acabaram de ganhar um irmãozinho não podem quebrar a cabeça da boneca-bebê quando raivosas. Nós, maiores de 18 podemos nos deliciar com um filme do Tarantino se vingando dos nazistas mas as nossas crias tem que ser essencialmente boas, puras e ingênuas. Que falta de generosidade a nossa. Exigir das crianças algo muito civilizado é na verdade a grande violência. Criança dá trabalho, ponto. E por trabalho me refiro á trabalho psíquico.
Mesmo os contos de fadas são repletos de sentimentos hostis, assustadores, angustiantes. De que outra maneira poderíamos apresentar o mundo real se não usássemos desses símbolos para as crianças?
  

Para lá deste quintal era uma noite que não tem mais fim

 Recentemente, revi “A noviça rebelde” com meus filhos e me dei conta de que o filme é de fato atemporal e genial ao mesmo tempo pois é uma maneira muito delicada de apresentar para as crianças o nazismo. Assim como a bruxa da branca de neve é a encarnação da inveja e o Capitão Gancho luta contra o tempo já que o crocodilo tic-tac refere-se a dor do envelhecimento. A grande questão das histórias é que elas possibilitam a reflexão, a partir da famosa moral da história. 
Por isso vale pensar que quando proíbo uma brincadeira estou proibindo que a criança reflita sobre algo que a angustia, que elabore um sentimento. Ou seja: estou represando um afeto que pode a intoxicar no futuro. É que aquilo que é reprimido tende a voltar com muita força, de acordo com Freud (Obviamente, que excluo aqui brincadeiras que coloquem em risco a criança).
É também em Sobre o Narcisismo que o pai da psicanálise coloca algo muito importante: Os pais vêem no filho um reflexo de si mesmos e por isso esperam de suas crias, algo muito puro, bom e sem maldade, algo asséptico. As crianças seriam condenadas então á reparação de seu narcisismo perdido ou seja tem como obrigação a realização dos desejos que lhe foram negados pela realidade, a menina deve então ser a reencarnação do sonho de princesa da mãe, enquanto o filho deve ser o jogador de futebol que o pai não conseguiu ser.  Só que criança também é gente, e precisa acima de tudo, ser compreendida.
 Hoje o que vemos é uma higienização da infância. Crianças devem ser seres puros, iluminados, o lobo mal é lobo bom e por aí vai.  E essa criança acorda adolescente do sonho da Bela adormecida, furando o dedo na dura realidade. E se assusta. E sangra. 
Contudo, já dizia um certo iluminista que o homem é o lobo do homem. E ás vezes os adultos agem mais como saturno que devora o próprio filho do que como fadas madrinhas que lhes oferecem o encanto de viver. 




Helena Cunha Di Ciero Mourão
Psicanalista e Editora convidada da Revista Amarello – Tema : Infância